Para uma sociedade sem racismo é preciso mais que textos no currículo escolar
De como geral, quando pensamos na contribuição que a escola aporta à educação de nossas crianças e adolescentes, o que nos vem à mente são conteúdos curriculares tradicionais, tais como gramática, aritmética, história, biologia etc. Ao pensar em escola, é comum também que imediatamente pensemos em sala de aula e caderno, atividades escritas, muitas regras de comportamento pré-estabelecidas e momentos, às vezes terríveis, de avaliação.
Mais raro é que a gente se lembre de que a escola é um espaço e tempo importante para vivenciar as relações interpessoais e aprender nesse convívio.
A cultura, no entanto, é algo que a gente efetivamente aprende no encontro entre pessoas. Muito mais do que na cópia monótona da lição passada a giz na lousa (ou acessada no hiperlink de um tablet super tecnológico). Portanto, querendo ou não, na escola a gente aprende muito sobre como se relacionar numa sociedade plural em que os desafios em torno da democracia e do direito à diferença ainda são muitos.
:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::
Não por acaso, então, as leis 10.639/2003 e 11.645/2008 (que tornaram obrigatório o ensino de cultura e história africana, afrodescendente e indígena) foram propostas como mudanças no modo como a escola pauta a educação das relações étnico-raciais.
Cultura se aprende no encontro
Sem discordar que a implementação dessas leis implica na inclusão de conhecimentos específicos em aulas já tradicionais, como nas de história por exemplo, é preciso lembrar – mais uma vez – que a educação das relações com vistas a uma sociedade sem racismo é algo que não pode se restringir a um texto incluído no item “para saber mais” ao final do capítulo do livro didático informando as características de diferentes etnias indígenas ou algo sobre a história do Quilombo dos Palmares.
É preciso que a escola incorpore, no seu cotidiano, momentos em que vivenciar a diferença e experimentar olhar para o mundo por outros ângulos faça parte da interação entre pessoas de variadas origens sociais, étnicas e geracionais.
Considero esses temas extremamente relevantes para o debate educacional da atualidade e, mesmo reconhecendo que ainda temos muito que avançar, me animo ao ver que muita coisa interessante tem acontecido nesse sentido nas escolas brasileiras.
Então, me senti feliz – honrada mesmo! – de ter tido a oportunidade de orientar a pesquisa de Mestre Guto Obafemi, cuja dissertação de mestrado foi defendida no final de janeiro na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Guto Obafemi, que veio para a pós-graduação já como mestre de capoeira, agora é também mestre em educação! Na alegria do encontro de saberes, pude ensinar sobre o que importa no mundo acadêmico, mas também pude aprender muito sobre Capoeira Angola e cultura banto.
Capoeira Angola e cultura banto
Pude aprender que a Capoeira Angola não se restringe ao gestual e não se identifica como uma prática esportiva ou competitiva. Trata-se, sobretudo, de uma manifestação cultural com práticas ancoradas em valores e princípios educativos trazidos da África, pelos povos bantos provenientes da região centro-sul do continente chamados no Brasil genericamente de negros de Angola.
A corporeidade, evidentemente, é aspecto central, mas nessa cultura o corpo não está desvinculado de outras dimensões fundamentais da vida social e da educação.
Por isso, Mestre Guto Obafemi defende que a Capoeira Angola possa estar na escola como um dos caminhos para a implementação da lei 10.639 no currículo da Educação Básica.
O espaço mais óbvio para acolher a capoeira na escola seria, evidentemente, as aulas de educação física. Nada contra. Mas a ideia ultrapassa esse ponto de obviedade, de modo que a defesa é que a Capoeira Angola possa estar na escola como cultura (e não apenas como atividade física), na sala de aula como no pátio, integrando também outras disciplinas escolares.
Na sessão de defesa de mestrado, a conversa em torno do trabalho de pesquisa apresentado foi riquíssima e uma das reflexões propostas ali me chamou especialmente a atenção:
E o que fazer diante do risco de perder a especificidade da Capoeira Angola quando ela entra na escola? O quanto é possível manter os princípios educativos originados da cultura banto – oralidade, circularidade, ludicidade, cooperativismo, entre outros – se a capoeira tiver que se ajustar ao modo escolar de fazer educação?
A escola que temos hoje teve seu modelo configurado na modernidade europeia e tem sido hábil em fazer com que a gente acredite que a cultura específica que a forjou é neutra e universal. Uma preocupação presente desde seu início foi evitar que saberes que não fossem considerados racionais e científicos adentrassem seus muros.
Exclusão
Neste sentido, não custa lembrar que a transmissão da cultura, em sua forma escolar, se organizou em torno da estreita noção de que existe apenas uma forma de racionalidade e que a formalização proposta pela ciência é a única que resulta em conhecimentos úteis e confiáveis.
Isso significou que, ao longo dos séculos, a escola recusou variados saberes em seus espaços e, com isso, excluiu também sistematicamente pessoas, identidades e grupos sociais inteiros.
É secular e continua atual o fato de que pessoas provenientes de culturas diferentes daquela considerada adequada na escola foram impedidas de frequentar seus espaços ou tiveram, na chamada democratização do ensino, autorização para que seus corpos entrassem na instituição escolar desde que despidos de suas culturas, seus valores, seus saberes ancestrais.
As leis 10.639 e 11.645 vieram dar nova feição a essa questão – na tentativa de enfrentar um problema muito importante para quem, como eu, defende a democracia em seu sentido mais abrangente – ao determinar que também as culturas (e não apenas as pessoas) de diferentes etnias precisam entrar na escola.
No entanto, a escola tem um poder enorme de destruir tudo o que não passa por seus restritos e eurocentrados critérios de avaliação do que importa na educação das novas gerações. Tal destruição se dá, muitas vezes, de forma sutil e com aparência de boas intenções (“para o bem dos alunos” e “para garantir a melhor educação para todos”).
Pedagogizar é central para o funcionamento da escola, mas pode ser um perigo quando se trata de saberes que foram historicamente excluídos da escola. Porque, no processo de tornar esses conhecimentos ensináveis no contexto escolar, pode-se acabar por esvaziá-los de sentido.
E era esse o risco que se discutia naquele momento de reflexão. Transformar a Capoeira Angola em duas ou três páginas do livro didático (ou apenas um box ao final de algum capítulo) anula algo fundamental: a oralidade. Incluir a Capoeira Angola pontualmente nas aulas de educação física, como prática esportiva, esvazia a riqueza cultural que a constitui. Isso para dar apenas dois exemplos.
O desafio parece ser inserir a Capoeira Angola na escola em sua integralidade, evitando o perigo que representa a formalização excessiva que a escola está acostumada a impor.
Natália Gil é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do grupo de pesquisa “HISTEB - História da escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados”. Tem se dedicado a investigar a história da exclusão na escola brasileira e as implicações dos processos de quantificação em educação.
---
Leia outros artigos da coluna Cidade das Letras no Brasil de Fato MG
---
Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
---
Edição: Elis Almeida