Muitas de nós passamos a vida tentando nos encaixar em uma fôrma que nenhuma parece caber direito
A escola parece ser o lugar perfeito para as meninas. Um universo em que a letra bonita, as canetinhas coloridas e o “senta e escuta” são super valorizados, oferece terreno propício para que os comportamentos estimulados nas meninas desde o nascimento tenham grande acolhida. Ou seja, muito do que identificamos como traços do “bom aluno”, nos mais variados contextos escolares, corresponde àquilo que nossa cultura ensina muito mais às meninas do que aos meninos.
Tudo que diz respeito à passividade do corpo, à docilidade no trato, à minúcia e ao cuidado na realização das tarefas tende a ser considerado como bom comportamento na escola. Longe de ser algo que nasce e se desenvolve naturalmente em um corpo portador de um órgão genital feminino, esses comportamentos são aprendidos em processos educativos que acontecem em casa, na igreja, na escola, nas festas, nas praças etc. e que começam muito cedo.
Das meninas se espera que sejam calmas, que gostem de usar vestido e que saibam sentar-se sem desarrumar, que prefiram seguir a decisão de alguém em lugar de tomar a iniciativa, que sejam delicadas com as mãos, contidas no gestual e uma infinidade de outras expectativas que vão, pouco a pouco, constituindo aquilo que socialmente identificamos como “jeito de menina”. E todas as meninas são naturalmente assim? Não! Mas não mesmo! Muitas de nós, e eu arriscaria dizer a maioria, passamos a vida tentando nos encaixar em uma fôrma que nenhuma parece caber direito.
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Acontece que esse treino em ser calma, dócil, passiva e atenta aos detalhes tem vantagens na escola onde, aliás, nos primeiros anos, a professora é quase sempre uma mulher, que diz como as coisas devem funcionar. Uma parte desse comportamento cordato valorizado na escola tem muito a ver com exigências disciplinares típicas desse espaço e que não têm nenhuma relação com questões de aprendizagem dos conteúdos curriculares formais. É o caso do ritual de entrar na sala de aula em filas, organizadas muitas vezes por ordem de altura, separadas entre meninos e meninas, em que é proibido correr, não muda em quase nada a capacidade de aprender, por exemplo, ciências.
Outra parte desses comportamentos, no entanto, corresponde a características que são efetivamente úteis para favorecer processos de aprendizagem. Afinal, ser capaz de dedicar horas a uma atividade introspectiva é algo que se aprende e que nossa cultura supõe que os meninos não sejam capazes de fazer. Ora, assim como as meninas são ensinadas a fazer atividades calmas, os meninos também podem ser.
A luta por equidade vai da escola ao mercado de trabalho
No que se refere aos desempenhos escolares, essas questões parecem fazer grande diferença. Por exemplo, a reprovação escolar é muito maior entre os meninos. Em 2018, do total de alunos reprovados na educação básica, 11,3% eram meninos e 6,9% eram meninas. Essa é uma péssima notícia! Evidentemente, é importante que as meninas possam ter um excelente desempenho escolar, mas isso não pode significar que fiquemos tranquilos com essa diferença de desempenho.
Por outro lado, vale observar que, quando o tópico é ousadia e assertividade, o sexo masculino se destaca. Pouco valorizadas na escola, essas são características decisivas no mundo do trabalho. Especialmente no que se refere à possibilidade de assumir posições de liderança, as características tipicamente femininas não contribuem tanto assim. Em 2017, um levantamento feito sobre o mundo dos negócios indicava que apenas 16% dos cargos de CEO e de diretoria executiva eram ocupados por mulheres no Brasil.
A questão tem causado preocupação também em países reconhecidos por terem maior equidade de gênero. Na Islândia, por exemplo, uma educadora propôs que as escolas voltassem a ser divididas entre escolas femininas e escolas masculinas, como era no século XIX, para que as meninas fossem encorajadas a serem assertivas e a desenvolverem maior resistência física. A hipótese que balizava a proposição era de que, educados juntos, meninos e meninas, a tendência era que as meninas assumissem uma postura “bem comportada” e, assim, acabavam recebendo menos atenção e estímulo dos professores.
Desconfio da pertinência da solução proposta, mas partilho da preocupação: como fazer com que as meninas aprendam a ser assertivas e ousadas? Acrescento, no entanto, outra preocupação: como fazer com que os meninos sejam capazes de dedicar atenção a atividades mais introspectivas e lentas? Além disso, como ensinar meninos e meninas a trabalharem bem juntos? Há dois anos, na escola em que estudam meus filhos, no momento de premiação da feira de ciências para turmas de 11 a 14 anos, não me passou despercebido que os grupos vencedores eram majoritariamente compostos de meninas e... apenas meninas!
Desempenho desigual
Ao dar uma olhada nos resultados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) de 2022, em que uma das questões analisadas é a diferença de desempenho por gênero, fico convencida de que essa é uma questão que merece muito mais atenção do que temos dado.
Singapura, que ocupa o prestigioso primeiro lugar no ranking de “melhor educação do mundo”, tem uma diferença de desempenho entre meninos e meninas que, na minha opinião, não deveria passar despercebida: as meninas tiveram 12 pontos a menos que os meninos em matemática e 20 pontos a mais que eles em leitura. De modo geral, os resultados indicam uma tendência de que as meninas tenham melhor desempenho em leitura e os meninos, em matemática. Entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), os meninos ultrapassam as meninas em nove pontos em matemática, enquanto elas os ultrapassam em leitura em 24 pontos.
Tenho muitas dúvidas se podemos mesmo considerar que isso é expressão de um processo educativo de qualidade. Mais ainda, acho que sem discutir o que leva a existirem essas diferenças, estaremos longe de vislumbrar um mundo em que tenhamos equidade de gênero.
Ou seja, longe de ser uma questão bem resolvida, essas informações nos ajudam a lembrar que na “corrida” pela equidade de gênero, a vitória não pode corresponder ao sucesso de um dos grupos: os meninos ou as meninas. Nesse assunto, uma “vitória” depende, na verdade, de conseguirmos diminuir essas diferenças para que meninos e meninas tenham o direito à educação garantido e, mais que isso, possam aprender modos colaborativos e de respeito às diferenças no convívio, tanto no mundo do trabalho como na vida pessoal.
Natália Gil é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do grupo de pesquisa “HISTEB - História da escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados”. Tem se dedicado a investigar a história da exclusão na escola brasileira e as implicações dos processos de quantificação em educação.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Leonardo Fernandes