Apaixonada e apaixonante, Marlucy Paraíso lembra de muita gente que fez e faz parte de sua trajetór
Eu sou daqueles que leem vários livros ao mesmo tempo. Não que eu veja alguma vantagem nisso, mas por dever de ofício e hábito de leitura fui me fazendo assim. Mas não deixa de ser prazeroso aos sentidos ver em harmoniosa convivência ao lado da minha cama e em outros lugares da casa, livros de autorias e áreas diversas! Por meio de seus livros, pessoas que jamais se conheceram ou se frequentaram dialogam... pelo menos comigo!
Há sempre a tentação de estabelecer ordem para as coisas. Ou, como dizia Foucault, uma ordem para o discurso precedente ou a priorizar. Mas o bom é que a gente não precisa ler um livro inteiro, já nos autorizava Daniel Pennac há algumas décadas, assim como podemos subverter a ordem quando a gente quiser. O que vale é a experiência e os atravessamentos das leituras na vida e da vida nas leituras. Tudo junto e vice-versa.
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Leitura que dá gosto
Nesse início de 2024, ando lendo algumas obras literárias, mas gostaria de falar de um livro lido ainda em 2023: Uma professora que forma professoras/es e trabalha para o alargamento do possível no currículo, de Marlucy Paraíso, publicado em 2019 pela Brasil Publishing, de Curitiba. Trata-se da edição do memorial apresentado pela professora à banca examinadora por ocasião de sua avaliação à classe de Professora Titular da UFMG, em 2018. É, pois, um gênero de escrita que, como já disse aqui, me cativa e mobiliza.
Acostumado a ler memoriais, por dever de ofício e por gosto, e lançando um livro de memória de estudantes de pedagogia – Coletivas e Singulares: memórias escolares de estudantes de pedagogia, organizado por Samira Araújo e por mim e publicado pela Polo Books –, foi com avidez e gosto que li o texto da Marlucy.
O livro é uma verdadeira aula de como escrever memoriais e demonstra uma imensa maestria no trato com as palavras. Coisa fina mesmo! Pelas letras, palavras, linhas e ao longo de todo o livro, vão desfilando autores, referências teóricas e bibliográficas, cartografias várias, lugares, instituições, campos disciplinares, que impressionam.
É impossível falar do livro assim, do livro todo, em poucas palavras. Por isso, ressalto aqui apenas o trato que a Marlucy dá ao texto quando fala do campo do currículo no Brasil e no mundo, e dos conceitos e ideias-chave que mobiliza para desentranhar assuntos difíceis, mas cotidianamente presentes em nossas vidas, sobretudo no universo da escola, e nos transmitir posturas, modos de fazer, modos de estar, caminhos possíveis.
Experiência, desejo, diferença, currículo, possibilidades, territórios, gênero, potências, feminino, hospedagem, afetos. O vocabulário de Marlucy para nos transmitir como se fez e se faz mulher, mãe, professora, orientadora, pesquisadora, autora, em currículo, sobre currículo, é imenso, rico, criativo. Deslocam sentidos, repõem utopias, desconstrói paradigmas com a tranquilidade e a destreza de quem reconhece o caminho percorrido. “Quem não a conhece não pode mais ver pra crer. Quem jamais a esquece não pode reconhecer”, canta Chico Buarque.
Aliás, por falar em Chico Buarque, como é bom ver e ler Marlucy pensando “com” outros autores e outras autoras, entre eles e elas, muita gente das artes, sobretudo da literatura. Não é um pensar “a partir de...”, daquele tipo serviçal às autoridades postas, o que ela defende. Pelo contrário, adepta e defensora da arte da bricolagem, junta, sem confundir, autorias e perspectivas diferentes para dar conta dos objetos de pesquisa, das pessoas e de suas relações, em diferenciação.
Apaixonada e apaixonante, Marlucy Paraíso lembra de muita gente que fez e faz parte de sua trajetória, de seus processos de subjetivação, de seus modos de ser e estar no mundo. Sem dizer nomes, ela vai desfiando aprendizados e aprendizagens. “Para que nomes? Era azul e voava!”, já poetava Mário Quintana. Nas aulas, na administração, nos currículos, vai descortinando potências e autorias.
Bom ler texto assim: maduro, criativo, provocador e profundamente cativante! Marlucy sabe, e nos deixa saber disso, que o memorial está ali, num “entre lugar”, entre a história e a ficção, pois de memória trata. E memória é trabalho, é criação, é invenção de si e do mundo no texto. E o resultado disso na obra é potente. Apesar de saber-se num mundo cada dia mais inóspito, Marlucy não se deixa curvar e segue acreditando em possíveis, no currículo e fora dele. Assim ELLA fez! Assim ELLA quis.
Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo e doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Leonardo Fernandes