Minas Gerais

Coluna

Precisamos falar sobre os 60 anos do golpe militar de 1964

Imagem de perfil do Colunistaesd
Imagem - Reprodução/Arquivo Nacional
A ditadura deve ser chamada por seu nome, exposta em suas entranhas de horror e violência


Em colaboração com Diogo Siqueira

 

O Brasil se aproxima da data que marca os 60 anos do golpe militar empreendido contra o presidente João Goulart em 31 de março de 1964. Naquela ocasião, tropas comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho saíram de Juiz de Fora, em Minas Gerais, em direção à cidade do Rio de Janeiro. A quartelada ganhou força com a adesão crescente das Forças Armadas, que tramavam há tempos contra o governo Goulart. Os setores legalistas das Forças Armadas foram rapidamente enquadrados, impedindo qualquer resistência armada à sublevação. Ademais, o próprio presidente da República repudiou a ideia da resistência, temeroso das consequências de uma guerra civil.

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui :: 

Em 2 de abril, com Goulart ainda em território nacional, o senador Auro de Moura Andrade, presidente do Congresso Nacional, declarou vaga a presidência da República, abrindo caminho para a posse do presidente da Câmara, Ranieri Mazzili, e a posterior eleição indireta do Marechal Castelo Branco. Essa ação, chancelada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sacramentou o golpe de Estado, que contou ainda com o amplo apoio da imprensa, do empresariado, de instituições religiosas, de órgãos de classe e de boa parte da população brasileira. Tiveram início os longos 21 anos da ditadura civil-militar, marcados por violações contínuas dos direitos humanos, pela restrição progressiva das liberdades coletivas e individuais, por políticas econômicas que arrocharam duramente as camadas populares e por um sem-número de crimes cometidos por agentes do Estado em nome da doutrina de segurança nacional.

Democracia e suas contradições

Na década de 1980, com o esgotamento do projeto soviético e a reorganização de diversos setores da sociedade civil, ganharam força os movimentos em prol da redemocratização. Em 1985, o Brasil elegeu indiretamente o primeiro presidente civil e iniciou o processo de transição para o regime democrático. Houve muitas frustrações e retrocessos nesse percurso: a morte de Tancredo e a posse de Sarney; as crises econômicas intermináveis até meados dos anos 90, com as trocas frequentes de planos econômicos; o governo traumático de Collor; as mazelas do projeto neoliberal dos governos FHC.

Houve, por outro lado, conquistas e momentos de alegria e esperança: a Constituição de 1988; o fortalecimento e a atuação constante de movimentos sociais; a construção gradual de um projeto progressista e popular, coroada com a eleição de Lula em 2002, seguida por quase 13 anos de governos do Partido dos Trabalhadores. Sobretudo, havia a confiança de que os tempos sombrios da ditadura eram página virada de nossa história.

Vieram, então, os grandes abalos que a nossa frágil democracia passou a sofrer a partir de 2013. As famosas “jornadas de junho” foram rapidamente instrumentalizadas pelos setores mais reacionários e antipopulares da política nacional, dando início ao combate sem tréguas contra o governo Dilma, o que culminou com o golpe jurídico-parlamentar de 2016. Ainda durante o governo Dilma, a famigerada Operação Lava-Jato adotou as práticas mais detestáveis de lawfare com o objetivo, hoje comprovado, de desmoralizar o Partido dos Trabalhadores e colocar Lula na prisão. O fruto podre desse ovo da serpente foi a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018. Desde então, a extrema-direita atuou diuturnamente para solapar as instituições democráticas e garantir a continuidade do projeto bolsonarista no poder. Somente com um esforço imensurável e com um arco amplíssimo de alianças, foi possível derrotar Bolsonaro nas eleições de 2022.

Depois disso, passamos a assistir com um misto de assombro, temor e indignação, às revelações de que uma trama golpista foi urdida por Bolsonaro e seus comparsas, incluindo militares de alta patente e em posição de comando nas Forças Armadas, com o objetivo de impedir a posse de Lula. Fracassados esses esforços, foi fomentada a fatídica mobilização fascista que teve lugar no 8 de janeiro de 2023, uma semana após uma cerimônia de posse que celebrou, no mesmo palco da Esplanada, a diversidade do povo brasileiro e a promessa de esforços por união e reconstrução do país. 

Como evidenciou o relatório da CPMI do 8 de janeiro, o Brasil esteve muito perto da deflagração de um golpe civil-militar. Se esse plano teria condições objetivas de ser bem-sucedido, é uma discussão que não cabe aqui, mas o simples fato de que houve uma tentativa já basta para exigir a mobilização de todas as pessoas comprometidas com a democracia.

Relembrar para não repetir

A mobilização a que nos referimos deve começar, necessariamente, com uma análise corajosa, coerente e honesta da história brasileira. Parte de nosso povo cultiva uma memória idílica do regime militar, enquanto outra parcela, incluindo muitos jovens, negam que o Brasil sequer tenha passado por uma ditadura. O antídoto mais eficaz para esse mal é a reafirmação da memória. Para que não se esqueça e para que nunca mais aconteça, a data de 31 de março deve permanecer no calendário nacional, e assim fomentar discussões, debates e elaborações sobre o passado, com vistas a fortalecer a democracia no presente e no futuro. Igualmente, o 31 de março deve seguir motivando manifestações coletivas e declarações de figuras públicas em favor dos direitos humanos e da liberdade. Posturas tímidas, conciliatórias e relativistas não podem prosperar.

A ditadura deve ser chamada por seu nome, exposta em suas entranhas de horror e violência, denunciada por seus crimes e contradições. Relembrar e defender a história não é apenas uma dívida que temos com o nosso passado. Trata-se, sobretudo, de uma dívida que temos com o nosso futuro, para que as futuras gerações de brasileiros e brasileiras tenham a chance de viver em uma pátria de democracia, diversidade e liberdade.

 

Luiza Dulci é economista e doutora em sociologia. Constrói o Movimento Bem Viver MG e integra a rede de jovens economistas "Desajuste – Economia Fora da Curva".

Diogo Siqueira é professor de História, Sociologia e Filosofia, pedagogo, especialista em Gestão Escolar e ex-vereador de Timóteo/MG.

--

Leia outros artigos de Luiza Dulci em sua coluna no Brasil de Fato MG

--

Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

 

Edição: Leonardo Fernandes