Sonho com um mundo em que não existam mais reformas de ensino, de nenhum tipo
Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou a “reforma da reforma” do ensino médio. Proposta durante o governo Michel Temer, em 2016, o chamado “novo ensino médio” alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e passou a vigorar em 2022. Foi um desastre desde o princípio. Uma catástrofe anunciada. Basta conhecer como funciona uma escola para saber que seria o caos. O movimento estudantil queria a revogação, assim como os sindicatos docentes e parte expressiva dos pesquisadores em educação. Mas o cenário político nos concedeu apenas a possibilidade de tentar deixá-la “menos pior”.
É interessante notar que, nesse caso, tanto escolas públicas como instituições privadas detestaram essa reestruturação que alterou a organização curricular e a carga horária destinada a cada componente. A reforma que está em vigor, entre outros detalhes, reduziu de 3 mil para apenas 1800 horas os componentes tradicionalmente escolares, como geografia, matemática, língua portuguesa, educação física etc., e criou “itinerários formativos” e componentes curriculares eletivos, que vão desde “sustentabilidade”, passando por “brigadeiro gourmet” e “o tonto e o acaso”, entre outras esquisitices.
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Embora tenha desagradado de maneira geral, salvar o que for possível não tem sido tarefa fácil. E não é a primeira vez que isso acontece na história da escola brasileira. Eu poderia dar muitos exemplos, porque o que não falta é reforma educacional na nossa história, mas vou me concentrar em apenas dois.
Reforma Capanema
A Reforma Capanema, em 1942, criou ramos no ensino secundário com a finalidade de profissionalizar uma parte da população. Entre os ramos, havia a opção pelo ginásio, que não profissionalizava e era o único que dava acesso irrestrito ao ensino superior, e havia os ramos de ensino profissional, como o comercial, industrial, agrícola etc., cujos diplomas impediam o acesso à universidade, a menos que fosse exatamente na área em que o estudante tinha feito o secundário. Por exemplo, se tivesse feito ensino secundário agrícola só poderia pleitear acesso à faculdade de agronomia.
Isso desagradou às classes médias, que queriam que seus filhos pudessem acessar a universidade. Como o ginásio era muito concorrido, às vezes não havia outra alternativa para continuar os estudos, a não ser frequentar um ramo de ensino profissional. Fizeram todos os movimentos possíveis para reverter essa regra, mas tiveram que esperar até 1950, quando a lei de equivalência foi aprovada, acabando com a diferença entre os diplomas de ensino secundário para acesso à universidade.
Reforma da Lei de Diretrizes e Bases (LDB)
O outro exemplo é a reforma da LDB, em 1971, que tornou obrigatória a profissionalização no ensino de 2º grau, nosso atual ensino médio, para toda e qualquer escola, inclusive as particulares. A reforma revisitou uma preocupação antiga e que vinha se ampliando com a expansão do acesso à escola primária ao longo do século XX. Seu propósito era evitar a alta procura das universidades.
Nas escolas particulares, a reforma foi muito mal recebida porque as elites não tinham nenhuma intenção de profissionalizar seus filhos em nível médio e, ao contrário, com o aumento da disputa no vestibular, queriam garantir para sua prole boas condições de competir nesse exame. Portanto, as horas dedicadas às matérias específicas dos cursos profissionalizantes eram percebidas como desperdício de tempo.
Os setores progressistas também repudiaram a reforma, pois ela explicitava o desejo dos governantes de que a população pobre aprendesse logo uma atividade laboral para trabalhar em nível técnico, reservando o ensino superior apenas a um pequeno grupo de privilegiados que poderiam vislumbrar salários melhores.
Embora tenha desagradado de forma geral, demorou 11 anos, até 1982, para que caísse a profissionalização obrigatória em nível de 2º grau.
Portanto, nada muito novo no fato de se tentar de tudo para impedir que jovens das camadas populares entrem na competição pelas historicamente insuficientes vagas nas universidades. A desculpa usada também não tem nada de original. O que sustenta a suposta necessidade de reforma do ensino é sempre a referência ao fato de que a educação estaria muito mal.
Embora, na prática, a gente tenha uma espécie de apartheid social nas escolas brasileiras, as leis sobre educação valem para todas as classes sociais. Daí que, mesmo as elites, têm se visto em apuros frente a esse novo arroubo reformista.
Reformar para quê?
De minha parte, desejo que consigamos minimizar os prejuízos, fazendo uma necessária “reforma da reforma”, e sonho com um mundo em que não existam mais reformas de ensino, de nenhum tipo. Porque mesmo quando se trata de uma boa concepção pedagógica, o resultado de reformar é ruim.
Primeiro, porque não é verdade que tudo vai mal na educação e que só uma mudança radical poderia “salvar” nossas crianças e adolescentes. Há uma invenção da crise da educação que não vem de hoje e não se baseia em análises cuidadosas do que se passa efetivamente nas escolas.
Evidentemente, sempre há o que se possa melhorar e nem tudo é perfeito. Mas aí entra a segunda razão pela qual sou contra as reformas do ensino: mexer na estrutura da escola desestabiliza todos os envolvidos, que se vêm, de uma hora para a outra, tendo que se acomodar às novidades e se situar no novo arranjo. Isso vale para gestores, professores, alunos e famílias. Ou seja, é gente demais se sentindo confusa e insegura ao mesmo tempo.
Mais grave ainda é que as reformas do ensino desmoralizam e desvalorizam os professores, já que, para mudar tudo, é preciso convencer a sociedade de que as coisas vão realmente muito mal. Ora, os professores, além de mal pagos, têm seus saberes profissionais totalmente desconsiderados pelas reformas do ensino. Não é de se estranhar que se sintam desmotivados.
Uma escola funciona bem e o ensino tem qualidade quando os envolvidos nas atividades cotidianas se sentem confiantes e estão engajados no processo de ensino-aprendizagem. Ganharíamos bem mais, e com garantias, se déssemos aos professores e gestores condições de mudarem a educação a partir de suas práticas, atualizando processos e objetivos com a sabedoria do “devagar e sempre”.
Natália Gil é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do grupo de pesquisa “HISTEB - História da escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados”. Tem se dedicado a investigar a história da exclusão na escola brasileira e as implicações dos processos de quantificação em educação.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Leonardo Fernandes