Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), proposta pela Procuradoria-geral de Justiça de Minas Gerais e aprovada pelo Tribunal de Justiça de MG (TJMG), questiona o porte de armas de fogo por agentes do sistema socioeducativo do estado. A medida está permitida pela Lei Estadual nº 23.049, em vigor desde 2018.
A ação adverte que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao analisar a constitucionalidade do Estatuto do Desarmamento, explicitou que a criação de normas para o controle do porte de arma de fogo é de competência privativa da União, por meio de lei federal. A lei segue em vigor até esgotado o prazo de recursos.
Para a pesquisadora Eduarda Lorena de Almeida, doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o porte de armas concedido aos agentes desconfigura um desenho feito, inicialmente, pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase).
“O sistema socioeducativo foi pensado para operar na lógica de um papel pedagógico, que deve ser direcionado aos agentes socioeducativos para conduzi-los a uma nova trajetória de vida e para um novo reposicionamento social”, explica.
A ação também argumenta que a categoria de agentes socioeducativos não é contemplada no rol da Lei Federal n. 10.826/2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, através do Sistema Nacional de Armas (Sinarm). Ou seja, a função não pode ser comparada à polícia penal e, portanto, tais profissionais não estão autorizados a deter equipamentos típicos da função da segurança, como uso e porte de armas.
Outro exemplo é a Lei 13.675/2018, que excluiu o socioeducativo do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). Para a pesquisadora, o texto reforça a necessidade de não se vincular a política socioeducativa à política de segurança pública.
A ADI aponta, por fim, que a lei vigente em Minas Gerais estaria em desacordo com normativas internacionais dos direitos humanos, como a Convenção sobre os Direitos das Crianças e as Regras das Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados de Liberdade.
“Tanto do ponto de vista formal quanto material, as decisões apontam claramente para a inconstitucionalidade dessas normas. Dessa forma, assim como aconteceu em Rondônia, Santa Catarina, Rio de Janeiro e Espírito Santo, é esperado que, em Minas, a ADI também tenha o mesmo desfecho. Assim sendo, a norma deixará de vigorar no estado”, analisa Eduarda.
A política pedagógica
Para a psicóloga Cristiane Nogueira, conselheira do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG), a reivindicação do porte de armas por parte dos agentes do socioeducativo vai na mesma direção da defesa do armamento feita por algumas parcelas da sociedade, mesmo diante de um país cada vez mais violento.
A conselheira avalia que é preciso um esforço, sobretudo do Estado, para que o sistema socioeducativo não se espelhe no sistema penitenciário.
“A gente tem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) com a prerrogativa da defesa e da garantia dos direitos de crianças e adolescentes, tendo seu desenvolvimento como prioridade absoluta. Então o sistema socioeducativo deveria, em tese, se constituir enquanto ambiente que realmente pode proporcionar o desenvolvimento integral dos adolescentes que estão em medidas de privação de liberdade”, explica.
Segundo Cristiane, tudo começa pela promoção da sociabilidade desses indivíduos, com educação formal e humana, para que as crianças e adolescentes possam estar melhor preparados para sua inserção na sociedade.
“Deveríamos apostar que esses adolescentes podem construir outros caminhos mais saudáveis de convivência”, destaca.
Função do agente socioeducativo em disputa
Segundo a resolução 119/2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e a Lei do Sinase, os agentes do sistema deveriam atuar como educadores dos adolescentes autores de atos infracionais privados e restritos de liberdade. Além de proteger a integridade física e psicológica de jovens e da comunidade socioeducativa.
Eduarda argumenta que é justamente essa dualidade entre a disciplina e a pedagogia o que tem gerado uma compreensão equivocada de como eles próprios se enxergam e, por consequência, como devem exercer suas atividades.
“Há, portanto, agentes socioeducativos que se veem como educadores sociais, enquanto outra parte se enxerga unicamente como agentes de segurança das unidades socioeducativas. E essa disputa é materializada tanto no discurso como na interação dos agentes com os adolescentes”, aponta a pesquisadora.
Em defesa do armamento, parte da categoria argumenta que sua atuação tem um grande nível de periculosidade, com situações de ameaças constantes nas unidades socioeducativas. No entanto, Eduarda aponta para falta de dados que fundamentem essas afirmações e questiona a efetividade do uso e do porte de armas para impedir que adolescentes agridam ou ameacem os agentes e seus familiares.
“Na verdade, o que as pesquisas demonstram, como diversas já produzidas pelo Instituto Sou da Paz, é que o descontrole da posse e uso de armas fomentaria a violência, ao invés de ser um fator protetivo. Dessa forma, esse meio de proteção da categoria, seria, para dizer o mínimo, ineficaz”, conclui.
Edição: Leonardo Fernandes