Minas Gerais

Coluna

Professores e alunos têm muito a dizer e são pouco ouvidos

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Imagem - Agência Brasil
Pensar a escola é agir sobre a sociedade

Educar não é uma atividade exclusiva dos profissionais da educação. Ao contrário, é uma prática social compartilhada com muitos, senão com todos os indivíduos que vivem em sociedade. O contato entre pessoas, nas mais diversas situações da vida, em ações intra ou intergeracionais, ocasiona processos espontâneos de aprendizado. Em algumas circunstâncias, as relações sociais pressupõem inclusive a ação intencional, mas não profissional, de educar. É o que ocorre entre pais, mães e filhos, já que aqueles pretendem e têm a responsabilidade de ensinar muitas coisas a esses.

Os professores não têm o monopólio de educar, nem são os únicos que intencionam ensinar. O que diferencia sua ação é que educam de forma racionalizada, para além de intencional. Ou seja, os professores não apenas dedicam muito de seu tempo à educação, como também pensam sobre seu fazer, preparam sua ação, conhecem os processos de aprendizagem, os materiais pedagógicos disponíveis etc. Nesse sentido, penso que cabe aos professores a tarefa social de trazer à pauta o debate sobre a educação, de alertar para detalhes da atividade educativa que passam despercebidos aos que não se dedicam sistematicamente a essa atividade e de articular ideias dispersas sobre o tema.

Assim, não é que os professores devam ter, necessariamente, a última palavra sobre questões educativas, mas há muito o que se atentar para o que sabem sobre educação. Minha impressão, contudo, é que os professores, paradoxalmente, têm sido deixados à margem dos debates educacionais. Isso acontece há décadas. O tema tem tido mais escuta de especialistas das mais diversas áreas - o que nem sempre significa que tenham algo de importante a dizer sobre educação - e leigos colocados em posições de destaque social.

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Sendo uma prática social abrangente, a educação não se restringe à preparação das novas gerações para participar da sociedade, como se apenas crianças fossem sujeitos do fazer educativo e como se elas não estivessem a todo o momento atuando em sociedade. Portanto, pensar a educação não se refere apenas à preocupação com o futuro, mas também no presente. Não se refere apenas aos estudantes stricto sensu, mas atinge todos nós.

Essa é a razão pela qual o tema interessa mesmo àqueles que não vivem o cotidiano das escolas. Quase todo mundo tem algo a dizer sobre educação. E não falta quem se meta a apresentar “soluções” aos problemas educacionais.

Visões em disputa

A reflexão sobre educação comporta sempre a intenção de pensar a sociedade em que vivemos e a ampla circulação do debate sobre educação é legítima em sociedades democráticas. Mas vale observar com atenção que não se trata de uma conversa despretensiosa. Quem entra nesse debate tem intencionalidades diversas – e não raramente conflitantes – e mobiliza caminhos argumentativos e recursos de poder muito variados. Pensar a sociedade é, ao mesmo tempo e efetivamente, agir sobre ela. Logo, pensar a escola é agir sobre a sociedade.

Essa compreensão contribui para deixarmos a ingenuidade de lado e reconhecermos que a disputa por definir como deve ser a educação em dado tempo e lugar tem implicações nos jogos de poder em que estamos necessariamente envolvidos. No meu entendimento, essa disputa é legítima. Atuamos socialmente e, portanto, devemos participar da construção da sociedade, o que significa, muito mais, participar na disputa sobre o que deve ser a sociedade.

Nessa disputa, tem sido recorrente a tentativa de estabelecer monopólios. Apenas os professores poderiam falar sobre educação ou apenas os médicos ou apenas os pesquisadores ou, talvez, apenas a OCDE. Para tanto, alguns recursos de autoridade têm sido mobilizados, como é o caso da evocação da ciência e das estatísticas. Assim, por exemplo, tem sido usual justificar a adoção de determinado procedimento pedagógico afirmando-se que pesquisas científicas teriam “atestado” ser o melhor modo de ensinar. É também muito comum apresentar estatísticas que supostamente “revelam” quais as mais acertadas decisões políticas a serem tomadas em matéria de educação.

Ouvir para avançar

Nesses jogos de poder em que os principais trunfos advém da racionalidade moderna, ou seja, dos procedimentos científicos, da objetividade dos números, da universalidade oriunda do Estado, aspectos fundamentais sobre educação tendem a ficar de fora. Sem pretender encerrar a questão, quero apenas destacar dois deles. 

Um primeiro ponto é que nem tudo o que importa em educação pode ser apreendido e expresso nas formas de conhecimento dominantes na atualidade. Uma segunda questão refere-se ao fato de que a reflexão ética sobre educação tem ficado quase sempre fora do debate, e pensar o sentido da educação tem parecido algo fora de moda.

Para que esses dois aspectos tenham o espaço que merecem no debate educacional, é preciso ouvir o que os professores e os alunos têm a dizer. Isso não significa que eu considere que professores e estudantes sempre e necessariamente tenham as melhores respostas às questões sobre educação. Significa, no entanto, que considero que a ciência, os especialistas, as estatísticas, as autoridades também não têm necessariamente as melhores respostas. A questão crucial é que educação envolve pessoas e culturas, e muda com o tempo, assim como as pessoas e as culturas mudam. Ouvir os professores e alunos é dar atenção aos sujeitos que efetivamente vivem o cotidiano educativo. Se essas pessoas não têm necessariamente as melhores respostas, fato é que nenhuma boa resposta pode resultar do seu silenciamento.

 

*Esse texto é uma versão reduzida da reflexão presente no Posfácio do livro O Ambiente Escolar em Transformação, organizado por Ana Laura Godinho Lima e Valéria Cazetta (Editora Alínea, 2022)


 

Natália Gil é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do grupo de pesquisa “HISTEB - História da escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados”. Tem se dedicado a investigar a história da exclusão na escola brasileira e as implicações dos processos de quantificação em educação.

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Leia outros artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

 

Edição: Leonardo Fernandes