Privatização da empresa pública de saneamento de SP é retrocesso histórico
“Quem inventou a fome são os que comem”, disse Maria Carolina de Jesus em seu livro Quarto de Despejo.
A frase de Maria Carolina de Jesus poderia ser atualizada hoje da seguinte forma: se quem inventou a fome são os que comem, no processo de privatização da Sabesp, em São Paulo, quem inventou a sede são os que bebem.
A privatização da empresa pública de saneamento do estado de São Paulo é o maior retrocesso da história mundial em termos de saneamento. O risco é grande de deixarem pessoas com sede. Na lógica da mercantilização da água, o impacto não é apenas socioeconômico, mas também jurídico, democrático, patrimonial, cultural, étnico e ambiental.
Processo suspeito
Em 2023, foram vendidas onze concessões pela Iguá Saneamento, em SP, já anunciando que o canibalismo capitalista viria para cima da Sabesp. Junte-se a privatização da Cedae do Rio de Janeiro, e percebemos que os territórios estão sendo definidos entre os jogadores. A alta rentabilidade das capitais do estado são sempre o foco. Deixando os investimentos incertos, inviáveis, menos rentáveis, sejam secundarizados ou usados para “equilibrar” as demarcações.
O que isso representará em termos de retrocesso?
Suponhamos um país ficcional em que todas as informações econômicas e de infraestrutura estratégicas estivessem na mão do presidente, do ministro da Economia e do ministro da Infraestrutura. Então, nas eleições, o ministro da Infraestrutura ganha e, posteriormente, como governador, promova a privatização da Sabesp. Então, a população fica sabendo que o ex-Ministro da Economia, está interessado, ele próprio, em uma sociedade, para a fatia da privatização.
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A mistura, portanto, de interesses políticos, pessoais e negócios públicos fica escancarada. Não se trata de acusar ninguém de corrupção, mas se trata de apontar controvérsias do processo de privatização. É no mínimo, absurdo, que o processo tenha entes que eram responsáveis por prepará-lo, como é o caso do Ministério da Infraestrutura e da Economia, de Jair Bolsonaro, em 2020, com o “Marco do Saneamento”. E agora estejam justificando boa parte dessa privatização com essa mesma lei que propuseram e aprovaram. E eles próprios estão interessados no negócio.
É válido lembrar que entusiastas dessas escolas neoliberais, esquecem que a própria privatização da água no Chile, no período de Pinochet, é um exemplo de quão fracassado e excludente este processo foi. Hoje a tendência é de reversão dos processos de privatização do saneamento pelo mundo.
Ainda sobre as suspeições, vale lembrar que foi no estado de São Paulo que ocorreu o maior escândalo de corrupção no saneamento. A Operação Sevandija, deflagrada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de São Paulo, bloqueou valores da AEGEA por suspeita de pagamentos de propina e fraude em licitação de obras. Executivos foram condenados e presos. A investigação mostrou que a AEGEA desviou pelo menos R$ 18,3 milhões dos cofres públicos.
Não estou aqui acusando empresa alguma de corrupção, aliás, isso é uma questão para a investigação. Mas fato é que a mistura entre negócios privados e políticas públicas tem sido alvo de investigação por parte do Ministério Público e da Polícia Federal desde sempre. Cabe a reflexão: por que tanto interesse em privatizar um bem como a água, em transformar em mercadoria um bem essencial, em entregar algo tão fundamental para atender ao interesse de quem só pensa em lucrar?
Processos de privatizações devem envolver as esferas municipais, estaduais e federal, afinal, as pessoas afetadas não são “clientes”, são cidadãos de direito. Privatizações geram exclusões. Um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), publicado em 2020, mostrou que as mulheres negras e solteiras são as que mais sofrem com a falta de saneamento básico. Segundo o estudo, 40% das mulheres negras não têm acesso à coleta de esgoto, contra 35% dos homens brancos. Esses dados mostram que a falta de saneamento básico é um problema que atinge de forma desproporcional as populações mais vulneráveis, como negros, mulheres e pobres.
Fator de risco à saúde
A ausência do saneamento básico é um fator de risco para a saúde pública, causando doenças como diarreia, cólera, hepatite A e leptospirose que levam até à morte. Outro estudo, publicado pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2023, mostrou que comunidades quilombolas no estado de Sergipe também sofrem com a falta de saneamento básico. O estudo mostrou que 80% das comunidades quilombolas não tinham acesso à água tratada e 70% não tinham acesso à coleta de esgoto.
Esses dados mostram que a falta de saneamento básico é um problema que afeta de forma grave as populações indígenas e quilombolas, que já enfrentam outros desafios, como a discriminação e a pobreza.
A falta de saneamento básico também é um problema grave nas favelas. Um estudo da Mares, publicado em 2022, mostrou que as favelas têm um índice de saneamento básico 30% menor do que as áreas urbanas não faveladas. O estudo mostrou que apenas 30% das favelas tinham acesso à coleta de esgoto e apenas 50% tinham acesso à água tratada. Esses dados mostram que a falta de saneamento básico é um problema que afeta de forma significativa as populações das favelas, que já enfrentam outros desafios, como a violência e a falta de oportunidades.
Sobra evidências de como esta privatização irá aumentar as contas de água, precarizar o serviço e fará com que o povo pague esta conta
O caso Enel é só mais um que reflete a questão da má qualidade da prestação dos serviços. Exemplos emblemáticos mais recentes são BRK Ambiental e Equatorial, que lideram em reclamações do consumidor ao Procon Maceió. Os fatores narrados expõem, portanto, o escândalo incomensurável de colocar em risco uma empresa que foi criada em 1973, para implementar o Plano Nacional de Saneamento. E que conseguiu promover durante 51 anos saneamento nos mais diversos territórios do estado mais populoso do Brasil, marcado por desigualdades, falta de acessos e problemas de gestão de políticas públicas. Garantido que 28 milhões de pessoas, 62% da população paulista, não passe sede e não tenham doenças devido ao tratamento de esgotamento sanitário. Promovendo igualdade, saúde e cidadania por meio de um modelo de gestão descentralizado e que consegue encarar os desafios e metas para universalização do saneamento até 2033.
Ocorre, também, que o próprio movimento de privatização seja nele mesmo algo lucrativo: rumores com a precificação são a ponta do iceberg da financeirização da água e seus impactos na Sabesp, como mostra a evolução do valor das ações da empresa.
Nos últimos 5 anos, e fortemente após os indícios de avanços da privatização, os papéis valorizaram demais. E isso não têm necessariamente a ver com saneamento, promoção de melhorias ou necessariamente investimentos – resulta da especulação e do direcionamento dos negócios visando o lucro dos acionistas: salários miseráveis, investimento apenas em áreas rentáveis, tratar seres humanos apenas no prisma de clientes. É o modelo agressivo do qual as privatizações no saneamento são estabelecidos.
Água não deve ser mercadoria, seres humanos não são meros clientes. Não passar sede não é apenas um direito, mas sim um dever humanitário. Cabe a nós denunciarmos os retrocessos como este. Como diria Millôr, se persistir as privatizações das empresas públicas teremos um longo passado pela frente.
Lucas Tonaco é secretário de Comunicação da Federação Nacional dos Urbanitários (FNU) e dirigente do Sindágua-MG
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Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida