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Artigo | Ler a Bíblia de forma fundamentalista é perigoso

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A leitura libertadora dos textos bíblicos consiste em interpretação comunitária, aberta ao outro, dinâmica, ecumênica e interreligiosa, geradora de vida, transformadora e multifacetária. - Foto: Freepik
Textos bíblicos sofreram influências de diferentes povos e culturas

Ler e interpretar os textos bíblicos de forma fundamentalista é ler ao pé da letra, do jeito que está escrito, sem levar em conta a época, a forma e o gênero literário, o contexto histórico, a finalidade para o qual foi escrito o texto, seu significado e simbolismo.

O desconhecimento das formas e dos gêneros literários pode levar o leitor a ter uma compreensão errônea dos textos bíblicos e a não apreender a verdadeira mensagem contida, tanto no Primeiro quanto no Segundo Testamento bíblico. 

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Ensinamentos nos foram transmitidos por meio dos escritos conhecidos como: históricos, proféticos, poéticos, sapienciais, legislativos e apocalípticos. É preciso que o leitor busque o significado que os autores, em determinada circunstância, na sua cultura, com as formas e os gêneros literários em uso na época, queriam expressar e, de fato, se expressaram. Desconsiderar as formas e os gêneros literários leva à projeção das nossas concepções preconcebidas sobre os textos bíblicos, o que resulta em leitura fundamentalista. 

Quem, por exemplo, desconsidera os gêneros literários, ao ler o Evangelho de Marcos, onde diz “o véu do templo se rompeu” (Mc 15,38) entende apenas como um pano se rasgando. Ou ao ler Apocalipse 21, 3 onde diz: “Deus armou sua tenda entre nós”, conclui apenas que Deus como pessoa está entre nós. Entretanto, considerando os gêneros literários, podemos dizer que pelo ensinamento e práxis de Jesus Cristo condenado à pena de morte pelos poderes político, econômico e religioso opressores, afirmar que o “véu do templo se rompeu” é afirmar que não há mais separação entre o céu e a terra, o divino está no humano. Deus habita no ser humano e em todos os seres vivos.

Já ler que “Deus armou sua tenda entre nós”, afirma que Deus não apenas está entre nós, mas está em nós, no próximo e primordialmente no outro que é oprimido e explorado. O evangelista Marcos e o autor do Apocalipse queriam superar todos os dualismos e separações que a cultura ocidental inoculou nas pessoas com o objetivo de retirar a dimensão de sacralidade de cada pessoa. Dotar o ser humano de sacralidade nos diz que o ser humano não deveria mais ser violentado.

O Documento da Pontifícia Comissão Bíblica Interpretação da Bíblia na Igreja faz uma análise de muitos métodos de interpretação bíblica. E o único método rechaçado com veemência é a leitura fundamentalista da Bíblia.

Segundo esse Documento da Igreja, a leitura fundamentalista é perigosa, porque sufoca e inibe o pensamento. “A abordagem fundamentalista é perigosa, pois ela é atraente para as pessoas que procuram propostas bíblicas para os seus problemas da vida. Ela pode enganá-las oferecendo-lhes interpretações piedosas, mas, ilusórias, ao invés de lhes dizer que a Bíblia não contém necessariamente, uma resposta imediata a cada um desses problemas. A leitura fundamentalista convida, sem dizê-lo, a uma forma de suicídio do pensamento. Ela coloca na vida uma falsa certeza, pois confunde, inconscientemente, as limitações humanas da mensagem bíblica, com a substância divina dessa mensagem”.

Quando uma pessoa diz: “a Bíblia não deve ser interpretada, mas apenas colocada em prática”, inconscientemente, essa pessoa está fazendo leitura fundamentalista. É verdade que a Palavra de Deus não está só contida na Bíblia, mas ela é uma das formas da revelação de Deus para o povo oprimido e escravizado que acredita no Deus da vida. A palavra de Deus está na Bíblia, mas também está presente na vida, na criação, no outro, prioritariamente a partir do outro que é oprimido e injustiçado, e, se manifesta plenamente no seu Filho Jesus, cujos ensinamentos e práxis estão na Bíblia.

Compreender os textos bíblicos em uma leitura libertadora

A leitura libertadora dos textos bíblicos consiste em interpretação comunitária, aberta ao outro, dinâmica, ecumênica e interreligiosa, geradora de vida, transformadora e multifacetária. A leitura libertadora leva em conta as formas e os gêneros literários, o contexto histórico, social, econômico, cultural e religioso da época em que nasceram os escritos bíblicos.

Daí a importância do estudo da Bíblia, também nas suas formas e gêneros literários. Para uma boa compreensão da Bíblia é fundamental reconhecer e identificar os gêneros literários dos textos bíblicos.

Pessoas habituadas ao estudo da Bíblia entendem que as formas e os gêneros literários são maneiras de comunicação oral e escrita, usados pelos autores e autoras da Bíblia, para expressar o seu pensamento e a sua mensagem. A escolha da forma ou do gênero que os autores e autoras da Bíblia usaram dependeu de vários fatores, entre os quais, o conteúdo, o ambiente do autor, aquilo que ele deseja comunicar e o povo destinatário que recebeu o anúncio.

Influência de diferentes povos e culturas

Deus quis se comunicar com o ser humano para revelar a sua mensagem, no seu imenso amor pelas suas criaturas. O autor muitas vezes se serviu de livros, textos que nasceram fora da história dos povos da Bíblia, mas foram introduzidos nela, como o livro de Jó, a narrativa do dilúvio... Outros sofreram influências de diferentes povos e culturas, com os quais conviviam e dos povos circunvizinhos, tais como, os sumério-acádicos, cananeus, egípcios, helenistas, romanos, amorreus, hititas, entre outros.

Esses povos tinham suas divindades, a quem dedicavam hinos e salmos na forma épico-mítica, por meio dos quais, descreviam também suas características, confiavam suas batalhas e atribuíam suas conquistas.

Muitos desses textos influenciaram os escritos bíblicos, como, por exemplo, o Salmo 104 teve sua inspiração no hino dedicado à divindade Aton, deus egípcio. As narrativas da criação em Gênesis 1,1-2,4a e 2,4b-7 sofreram influência do hino a Enuma Elish, mito babilônico da criação; a narrativa do dilúvio bíblico, do poema de Gilgamesh, mitos existentes na cultura acádica e babilônica que serviram de inspiração para os povos da Bíblia.

No livro de Gênesis, os relatos da Criação estão em uma linguagem simbólica e podem ser considerados contramitos, isto é, mitos usados para “explicar” as origens e responder a mitos mistificantes dos povos vizinhos. Mito não é algo que não existe. Trata-se de uma tentativa de explicar o difícil de ser explicado. Por isso usa uma linguagem simbólica.

“No início (bereshit, em hebraico) criou Deus...” (Gen 1,1a). Assim abre-se a Bíblia. Normalmente se entende a primeira palavra da Bíblia de forma temporal, cronológica, como se tivesse tido um início a partir do nada e em tal data. Essa interpretação tem alimentado um conflito artificial entre Criação e Evolução. Darwin tem sido satanizado, caluniado e incompreendido pelos adeptos da “teoria da criação”. A questão não é criação ou evolução, mas criação na evolução.

A palavra bereshit (= no início) é difícil de ser traduzida, pois é “início, começo, cabeça”, mas não no sentido temporal, cronológico. Trata-se de “início, começo” no sentido qualitativo, no mais profundo das relações da teia da vida. Temos que trazer à mente a distinção que os gregos fazem na ideia de tempo: chronos (tempo físico quantitativo, sucessão dos fatos) e kairos (tempo qualitativo, o divino tocando o humano, a graça contagiando tudo).

O autor bíblico não quis estabelecer uma oposição entre Criação e Evolução, pois falou de “início” no sentido de algo profundamente qualificado tocando a evolução. A criação se dá na evolução. O dedo de Deus toca tudo. Tudo está permeado e perpassado pela dimensão divina. Evolução é a criação continuada, continuamente acontecendo.

Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica)

 

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida