Pisa ligeiro, pisa ligeiro! Quem não pode com as formigas não assanha o formigueiro!
Em uma de suas proposições, o filósofo francês Henri Lefebvre, cujas ideias sobre o direito à cidade têm sido historicamente apropriadas por movimentos de ocupações urbanas em Belo Horizonte e outros lugares, sugere uma conexão inescapável entre a produção do espaço e quaisquer possibilidades de mudanças reais na vida e na sociedade.
Ocupações urbanas são práticas espaciais que ocorrem em contraposição a formas de produção do espaço que vêm já prontas e baseadas na propriedade privada individual e na moradia como mercadoria, mais do que um bem necessário. Se por um lado esse tipo de produção tem resultado na produção de cidades opressivas e injustas, as ocupações procuram escapar a essa lógica para, de alguma maneira, alterá-la.
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No livro Sobrevivência dos Vagalumes, Georges Didi-Huberman identifica certas formas insurgentes, ora visíveis, ora invisíveis, em lampejos passageiros e pouco iluminados. Vagalumes, na metáfora do autor. Essa potência luminosa que depende de uma existência coletiva evoca a capacidade vital de articulação em rede, plural e mutável das ocupações. Mas a potência das construções coletivas não é novidade nas ocupações em Belo Horizonte. Como frequentemente entoado em seus territórios, “quem não pode com as formigas não assanha o formigueiro”. Para além do caráter gradual, cotidiano e coletivo de suas práticas, a formiga é alegoria da obstinação no enfrentamento de obstáculos e violências cotidianas.
A expressão frequentemente utilizada no Brasil “movimentos dos sem-teto”, reflete com precisão a principal causa da realização de ocupações, também no caso de Belo Horizonte: injustiça habitacional. Não surpreende que das 77 ocupações identificadas na Região Metropolitana de BH desde os anos 1990, cerca de 96% sejam para moradia, segundo dados coletados pela autora entre 2019 a 2024 Do total, ocupações de terras em regiões periféricas para autoconstrução representam cerca de 58%, e ocupações em edificações previamente abandonadas somam uma significativa parcela de 42%. Estas, em geral, estão localizadas em áreas centrais e bem servidas da cidade.
Por um lado, o ato de ocupar relaciona-se à necessidade urgente de abrigo e permanência. Por outro, lutas por moradia se inserem numa disputa mais ampla pelo reconhecimento de seus atores como legítimos agentes políticos, produtores de cultura e de conhecimento, com participação plena na vida das cidades. A perspectiva de um teto sobre suas cabeças é apenas o primeiro passo na disputa pelo direito à cidade.
A produção do espaço nas ocupações, em grande parte indissociável da coletivização do cotidiano e de práticas autogestionárias, contribui ainda para uma melhor compreensão dos obstáculos e oportunidades contidos nessas noções, muitas vezes restritas ao plano teórico.
Por fim, a potência transformadora dessa forma de produção do espaço não deixa de existir com o fim de uma ocupação. Mesmo que ela resista apenas em um vislumbre. Seja oscilando como as luzes dos vagalumes ou engajadas na construção resiliente das formigas. Suas lutas continuam no tempo e, em diferentes graus, também nas mentes e práticas daqueles que as conheceram.
*Uma versão expandida deste artigo foi publicada em BARUQ, R. Casa encantada: Retrato da luta por moradia em Belo Horizonte. São Paulo, SP: GLAC edições, 2024.
Clarissa Campos é professora do Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura da UFMG, pesquisadora do Núcleo de Belo Horizonte do Observatório das Metrópoles.
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Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Leonardo Fernandes