Passados cinco anos do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho nenhum proprietário ou integrante da direção da empresa foi julgado, muito menos condenado ou preso. Apesar de farta documentação atestando que eles sabiam da possibilidade de rompimento iminente. “Não faltam provas de que se tratou de um crime premeditado da Vale em Brumadinho”, é o que afirma Marina Oliveira, moradora de Brumadinho e liderança dos atingidos.
Se a justiça criminal não andou, tampouco a reparação das famílias e dos territórios destruídos. Nem mesmo a legislação, em que pese leis terem sido aprovados, tem sido garantidora de segurança para as comunidades. “Desastres como o de Mariana e Brumadinho não foram suficientes para garantir que crimes como estes não se repitam”, afirma Oliveira.
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Confira essa e outras informações na entrevista com Marina Paula Oliveira é doutoranda em Relações Internacionais, conselheira do Conselho Episcopal Latinoamericano (Celam) e militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e do Movimento Brasil Popular, além de colunista do Brasil de Fato MG. A entrevista foi concedida para o Boletim do Observatório de Saúde de Trabalhador de Belo Horizonte, da Faculdade de Medicina da UFMG (OSAT-BH).
OSAT: Há 5 anos, ocorreu o rompimento da barragem B1 da mina do Córrego do Feijão, da empresa mineradora Vale. Na sua opinião, trata-se de um desastre-crime socioambiental?
Marina: Não faltam provas de que se tratou de um crime premeditado. Documentos apresentados nas três Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) realizadas pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), pela Câmara dos Deputados (CD) e pelo Senado Federal (SF), demonstram o conhecimento prévio por parte de gestores da Vale e da TUV SUD de uma série de irregularidades na barragem.
Outras duas empresas se negaram a fornecer a declaração de estabilidade. Mesmo assim, a Vale seguiu pressionando e buscando outras empresas que fornecessem a declaração, a despeito das reais condições instáveis da estrutura. Cinco meses antes do rompimento, a empresa subsidiária alemã TUV SUD apresentou documentos falsos de estabilidade. Houveram trocas de e-mails entre os funcionários das empresas, indicando problemas na estrutura. Esses documentos podem ser encontrados nos relatórios das CPIs e no relatório produzido pela Política Federal.
As provas deste crime também estão nos nossos territórios. São os nossos corpos contaminados. Nossas casas soterradas. Nossos amigos e familiares enterrados vivos. Não entendemos qual é a dificuldade de garantir justiça e responsabilização criminal para ambas as empresas.
Quem são os atingidos por esse desastre-crime, e como suas vidas foram impactadas?
Marina: Somos um milhão de pessoas atingidas pelo crime da Vale em Brumadinho, espalhadas em 26 cidades ao longo da Bacia do Rio Paraopeba, no estado de Minas Gerais. Somos familiares de vítimas, trabalhadores diretos e terceirizados, crianças, indígenas, quilombolas, agricultores familiares, pescadores, moradores de centros urbanos e zonas rurais.
Algumas pessoas perderam seus familiares, outras perderam suas casas, plantações e modos de subsistência. Atualmente, a população atingida está exposta a elevados níveis de metais pesados como chumbo e arsênio, que estão presentes na água, no solo e no ar da região atingida. Não obstante, os efeitos na saúde têm se agravado com o tempo, sobretudo em relação à saúde mental, com o aumento dos casos de suicídios, consumo de ansiolítico, antidepressivo, aumento do consumo de álcool e drogas, obesidade, entre outros.
Além disso, as obras de reparação têm atraído milhares de trabalhadores, o que tem sobrecarregado os serviços públicos, o trânsito e a infraestrutura local, uma vez que a cidade não estava preparada para lidar com a nova dinâmica. Isso tem resultado no aumento dos preços de produtos básicos, assim como do setor imobiliário, sufocando outros setores da economia que não estejam conectados às demandas da mineração.
Há também uma exaustão social no que se refere à vida em comunidade, em razão da quantidade de reuniões que os atingidos precisam organizar e participar para exigir seus direitos, gerando jornadas triplas de trabalho não remunerado. Esse tempo, que antes era dedicado às atividades de convívio comunitário e à família, se transformou em tempo dedicado às reuniões com Instituições de Justiça, Assessorias Técnicas, Consultorias, empresas terceirizadas, entre outros.
Muitas vezes estas reuniões não produzem resultados e melhorias concretas na vida dos atingidos, gerando frustração. Ao mesmo tempo, a sobrecarga de trabalho, adicionado ao cansaço acumulado, acaba impedindo que os atingidos se dediquem à organização de atividades que antes faziam parte da vida cotidiana da comunidade, como festas, encontros, cursos, eventos, oficinas, campeonatos, entre outros.
Nesse contexto, há um esgarçamento do tecido social, em razão das contradições que a própria Vale provoca no interior da sociedade. Isso tem contribuído para uma maior polarização entre os atingidos, criando e intensificando conflitos comunitários, assim como aumentando as perseguições políticas contra defensores de direitos humanos e militantes de movimentos sociais.
Esses são apenas alguns dos muitos impactos que seguem se reproduzindo e se atualizando com o passar do tempo.
Como você avalia o papel do Estado brasileiro diante desse desastre-crime?
O Estado vem demonstrando estar mais próximo dos interesses das empresas do que da população
Marina: Infelizmente, a despeito dos esforços de algumas instituições e organismos públicos, o Estado brasileiro vem demonstrando estar mais próximo dos interesses das empresas do que da população, privilegiando interesses privados em detrimento do bem estar coletivo.
Percebemos uma solidariedade desproporcional do estado em relação às mineradoras que vêm cometendo crimes nos nossos territórios. Infelizmente isso ocorre, também, porque nossas Instituições de Justiça, Parlamento, governos e demais centros de tomada de decisão ainda têm pouco ou quase nenhum contato com a realidade cotidiana das nossas comunidades. Pelo contrário, na maioria das vezes as decisões são tomadas em espaços que nós, atingidos, temos dificuldade de acessar. Enquanto não ocuparmos esses espaços, eles não serão representativos de nossas demandas, e, consequentemente, não seremos capazes de fazer as mudanças que precisamos.
Como os atingidos se organizam na luta por justiça e quais são suas principais demandas?
Demandamos responsabilização criminal para os gestores da Vale e da TUV SUD
Marina: Nos meses posteriores ao rompimento da barragem, familiares de vítimas e comunidades atingidas ao longo de toda a bacia do rio Paraopeba iniciaram seu processo de auto-organização para lutar pelo encontro dos corpos das vítimas, por justiça e pela reparação integral dos territórios afetados. Para isso, foram formadas várias comissões, coletivos e articulações de atingidos.
Em fevereiro de 2019, com a determinação do juiz responsável pelo caso, as comunidades conquistaram o direito à assessoria técnica independente. A principal finalidade das assessorias seria garantir a participação informada e qualificada dos atingidos, buscando diminuir a desproporcionalidade de controle do conhecimento e poder por parte da Vale.
No entanto, esse processo de auto-organização foi violentamente interrompido quando os atingidos souberam, pela imprensa, que o governo estadual estava negociando os termos da reparação diretamente com a Vale e sem a participação das vítimas. Além de não poderem participar das rodadas de negociação, o acordo ocorreu em sigilo judicial e os atingidos não tiveram acesso às informações.
Nossas principais demandas dizem respeito à recuperação do meio ambiente, incluindo a fauna, a flora e a biodiversidade local. Em relação à reparação socioeconômica, buscamos medidas relacionadas à superação da minerio-dependência e diversificação da matriz econômica. Também exigimos a garantia de nossos direitos básicos, com indenizações individuais e coletivas justas e rápidas.
Demandamos justiça, responsabilização criminal para os gestores da Vale e da TUV SUD, assim como garantias de não repetição. Por fim, exigimos acesso à informação qualificada, transparente e independente, com garantia do nosso direito de discordar, protestar e participar do processo de reparação, sem que haja qualquer retaliação.
O Estado de Minas Gerais, as instituições de Justiça e a Vale firmaram um acordo de R$37,69 bilhões em 2021, com a previsão de projetos de reparação dos danos socioambientais e socioeconômicos. Hoje, 5 anos depois do rompimento, o que foi realizado? As pessoas e territórios atingidos foram reparados?
O acordo foi bom para o governo, mas péssimo para o Estado
Marina: O resultado final das negociações do acordo escancarou a ausência dos atingidos no processo. O acordo que deveria atender as demandas por reparação integral e justiça não incorporou as necessidades dos territórios. Pelo contrário, o governo estadual se aproveitou da tragédia para incorporar recursos que deveriam ser destinados à reparação no orçamento público estadual.
Assim, pouco tempo antes das eleições de 2022, o governador Zema repassou recursos financeiros para todas as 853 prefeituras do estado. Esta iniciativa certamente contribuiu para a sua aproximação com os municípios e, consequentemente, para sua reeleição.
O governo também incorporou o projeto de construção do Rodoanel ao plano de reparação. Trata-se de uma grande contradição já que o projeto beneficia principalmente as mineradoras que operam no estado, além de que a construção da rodovia irá desalojar milhares de famílias e causar novos impactos socioambientais.
Outra crítica em relação ao acordo é o fato de terem sido destinados recursos da reparação para financiar o Plano Estadual de Mineração Estadual. O setor é atualmente responsável por diversos crimes socioambientais e pela situação de insegurança hídrica de várias comunidades.
Nesse contexto, o acordo foi bom para o governo, mas péssimo para o Estado. O termo firmado extinguiu diversas perícias técnicas e estudos que estavam sendo realizados pela Universidade Federal de Minas Gerais, perita do juiz. Além disso, o valor global acordado foi inferior ao valor devido, segundo estudos realizados pela Fundação João Pinheiro.
Como as comunidades não participaram do processo de negociação do acordo, as demandas e denúncias dos atingidos não foram incorporadas. No entanto, essas demandas seguem legítimas, pois o arranjo institucional não limita a luta por justiça e reparação integral dos nossos territórios.
Existem outras barragens de rejeitos de mineração em risco de rompimento na região?
Marina: Apesar da Lei Mar de Lama Nunca Mais exigir que todas as barragens de rejeitos a montante fossem descaracterizadas até fevereiro de 2022, ainda existem 38 barragens de rejeitos no Estado de Minas Gerais. Ou seja, as mineradoras descumpriram a lei e fizeram um acordo com o governo, que estendeu o prazo de descaracterização para 2035.
Barragens são estruturas naturalmente instáveis. Precisam de fiscalização e monitoramento constante, com investimentos consideráveis para garantir sua segurança. Como o atual modelo mineral está inserido na lógica capitalista, as mineradoras têm precarizado cada vez mais as condições trabalhistas, assim como realizado cortes significativos nos investimentos em segurança. Esse ainda é o modo mais eficaz que encontraram para reduzir os custos e maximizar os lucros.
Ao mesmo tempo, os organismos de fiscalização seguem sucateados pelos órgãos públicos, com pouquíssima capacidade de monitorar as centenas de estruturas espalhadas em diferentes regiões do Brasil. Infelizmente desastres como o de Mariana e Brumadinho não foram suficientes para garantir que crimes como estes não se repitam.
Existe um outro modelo de mineração possível? Caso exista, quais são os principais obstáculos para alcançá-lo?
Marina: Nem sempre a mineração foi como é hoje. Povos e comunidades indígenas e tradicionais foram precursores em criar ferramentas e utensílios com minerais que tornavam a vida cotidiana das comunidades muito mais acessível e simples. Infelizmente, o modelo mineral atual está inserido na lógica capitalista, e se preocupa exclusivamente com a acumulação e concentração de lucro em poucas mãos. Ou seja, os benefícios que deveriam ser socializados para garantir o bem estar coletivo, se concentram unicamente nas mãos das elites econômicas e políticas. Ao mesmo tempo, os prejuízos e impactos provocados pelos empreendimentos minerários se restringem às populações mais pobres.
Construir um modelo mineral mais justo, significa colocar o povo em lugar de centralidade na tomada de decisão. É o que nós, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), entendemos como soberania popular. Não existe uma receita pronta, mas certamente este modelo mineral está fundamentado em princípios de justiça socioeconômica e ambiental.
O desafio principal para a concretização desse novo modelo mineral passa pela garantia do direito à participação informada, qualificada e independente. Atualmente, a arquitetura dos processos de licenciamento e reparação é construída para agilizar e facilitar a instalação dos empreendimentos, a despeito dos impactos socioambientais.
As mineradoras são conhecidas por sonegar impostos e os valores que chegam às prefeituras são insignificantes, especialmente quando comparados aos lucros extraídos dos territórios e aos danos socioambientais provocados. Ademais, a população não tem participação na definição de como estes valores devem ser alocados. Muitas vezes, o pouco recurso que chega, se transforma em show de algum cantor sertanejo.
Um modelo mineral mais justo e soberano passa também pela estatização de grandes empresas mineradoras. A lógica de empresas privadas é a maximização de lucro para seus acionistas. É por isso que essas mineradoras não estão conectadas com um projeto de desenvolvimento local, regional e nacional. Uma vez que a empresa é pública, é possível direcionar seus rendimentos para áreas consideradas estratégicas pelo estado, como saúde, educação, cultura, infraestrutura, entre outros. Isso não significa que empresas públicas não gerem impactos e violações de direitos. Mas significa que empresas públicas têm mais condições de planejar suas ações, calculando o custo e benefício de acordo com as necessidades da população, reconhecendo que lucros rápidos e arriscados podem significar prejuízos no curto, médio e/ou longo prazo.
Se a Vale fosse uma empresa estatal, certamente calcularia que matar 272 cidadãos, desalojar centenas de famílias e contaminar toda uma bacia hidrográfica, geraria prejuízos que ela própria, enquanto organismo estatal, precisaria remediar. Não é o que ocorreu em Brumadinho e Mariana. A empresa firmou acordos de reparação com valores inferiores ao devido, e segue cometendo crimes reincidentemente, o que demonstra que, para os gestores da empresa, os crimes valem a pena.
Edição: Elis Almeida