Você já imaginou como é conciliar a correria do trabalho com a maternidade e a participação política? Nos movimentos populares, milhares de mulheres vivenciam essa realidade, enfrentando os desafios impostos pela falta de tempo e pelo machismo estrutural, mas encontrando acolhimento e formando novos lutadores e lutadoras por um mundo mais justo.
Esse é o caso de Laíssa Gomes de Miranda, de 36 anos, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em Minas Gerais. Sua filha, Maria Flor, de apenas 6 anos, acompanha a mãe nas atividades de militância desde quando ainda estava na barriga.
“Ser mãe é política, é uma forma de estar na luta. Um dos momentos mais fortes que eu vivi com a Maria Flor foi quando, durante uma atividade dos atingidos, quando ela tinha uns 3 anos de idade, ela falou para mim: ‘mamãe, como é forte estar aqui, né?’. Desde pequena, ela já sente o impacto da força da luta do povo, da importância da luta política”, relembra Laíssa.
“Também foi nesse espaço que eu entendi que ela também é um sujeito político. A militância é uma troca. Ela é um sujeito, tem seus direitos e entende a luta, do jeito dela. Nas últimas eleições, ela também participava ativamente das campanhas e dizia que era ‘para tirar o povo da fome’. Ou seja, essa ideia da materialidade da realidade do povo brasileiro ela também já tem”, complementa a militante do MAB.
Da mesma forma, Angela Eulalia dos Santos, auxiliar de enfermagem aposentada em Belo Horizonte, de 65 anos, conta que o vínculo de sua filha Júlia Ferraz com a militância também vem desde antes do seu nascimento.
A dirigente do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Belo Horizonte (Sindibel) relembra que participou da marcha do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1997, quando estava grávida.
“Júlia já estava na minha barriga naquela marcha dos sem terra, que marcou muito a minha vida, porque no dia seguinte eu fui saber que tinham encontrado dois indígenas queimados em Brasília. E, quando eu fui contar essa história para o pai dela, eu falei: ‘como vai ser vida da Júlia quando estiver grande e nós formos contar essa história para ela?’. E ele foi brutalmente contra, porque já era machista e não gostava que eu participasse da luta”, conta.
“Desde os 2 anos, ela começou a me acompanhar nas atividades políticas e foi assimilando essa consciência de classe. Teve um momento em que a minha família se juntou e pediu para eu largar a militância, porque eles tinham medo que me matassem em função da luta. E a única voz que se levantou para me defender foi a da Júlia. Ela estava com 8 anos e falou: ‘gente, se a minha mãe largar isso, ela vai morrer, porque isso faz parte dela, essa é a luta dela’”, complementa Angela.
Desafios
Um dos principais desafios enfrentados pelas mulheres mães nos espaços políticos é a falta tempo para lidar com as tarefas da maternidade, da casa e a atuação militante. Muitas vezes, elas precisam acionar amigos e familiares para ajudar no cuidado com os filhos.
“A gente tem menos tempo, né? A gente trabalha mais. E, às vezes, eu não consigo ter o mesmo rendimento de um outro companheiro, que não tem tantas horas tomadas pelas tarefas domésticas e de cuidado. O maior desafio é a gente socializar o cuidado de forma coletiva, porque assim, a gente consegue tomar a frente de outras tarefas”, relata Laíssa.
Ciranda infantil
Ao mesmo tempo, os movimentos populares vêm desenvolvendo as experiências das cirandas infantis, um espaço pedagógico, voltado para as crianças, com o objetivo de acolhê-las, formá-las e dar condições para que as mães participem das atividades políticas.
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“A ciranda é uma ferramenta de luta muito importante para que as crianças também estejam inseridas nessa realidade. É um privilégio para a Maria Flor estar nesses espaços e inserida nesse contexto de aprendizagem. Porque a ciranda não é só um espaço para deixar as crianças e para a luta. É também para a Maria Flor entender a luta”, finaliza Laíssa.
Orgulho
Aos 27 anos, Júlia Ferraz também é uma mulher militante. Para sua mãe, Angela Eulalia, o sentimento é de que cumpriu com sua principal tarefa.
“Me sinto muito orgulhosa e eu sempre contei para ela sobre as nossas lutas para que ela nunca se esqueça que ela sempre esteve junto. Inclusive, houve uma manifestação que eu levei ela comigo, e a polícia ameaçou me punir por ter levado ela comigo. Eu peguei e coloquei ela em cima do caminhão de som. Eu me sinto realizada”, conclui Angela Eulalia.
Cuidado é trabalho
Em 2021, a Argentina se tornou o primeiro país da América a aprovar uma lei que considera o cuidado materno como trabalho. A medida garante aposentadoria para 155 mil mulheres maiores de 60 anos, que não conseguiram completar os 30 anos de contribuição por se dedicarem à maternidade.
O Programa Integral de Reconhecimento de Tempo de Serviço por Tarefas Assistenciais foi apresentado pela Administração Nacional de Seguridade Social (ANSES). Segundo a entidade, aproximadamente 300 mil mulheres, entre 59 e 64 anos, não conseguem se aposentar por não terem o tempo de serviço exigido.
Segundo a Oxfam International, as mulheres dedicam cerca de 12,5 bilhões de horas diárias ao trabalho de cuidado não remunerado em todo o mundo. Se fossem remuneradas, seriam aportados à economia global aproximadamente R$ 50 bilhões ao ano.
Edição: Leonardo Fernandes