Minas Gerais

Coluna

Réquiem para a memória: patrimônio, incêndios, escombros e descaso

Reprodução - Tânia Rego / Agência Brasil
Andar pelas ruas das cidades desperta memórias e também produz esquecimentos

Em Retratos Fantasmas, documentário lançado em 2023, Kleber Mendonça Filho demonstra a relação que construímos com a cidade e o lugar que habitamos. No caso do documentário, é possível perceber uma relação subjetiva que atua em nossa formação e percepção de mundo, envolto aos “lugares de memória” que as cidades possibilitam por seu patrimônio. Os fantasmas aos quais o diretor se refere são os cinemas que não existem mais em Recife e cujos prédios foram destinados a outras finalidades. 

Andar pelas ruas das cidades é reviver memórias afetivas, reconstruir identidades e se educar a partir dos ensinamentos construídos pelos patrimônios materiais e imateriais. O patrimônio brasileiro, nesse caso, é fundamental para nossa própria formação e entendimento de nação, de identidade, de pertencimento e, o mais importante, da preservação do que somos e da projeção do que poderemos ser. 

Andar pelas ruas das cidades desperta memórias, mas sem que percebamos, também produz esquecimentos. Vou me ater no aspecto do esquecimento que está intimamente ligado ao projeto de sociedade que historicamente compõem uma triste característica brasileira: o descaso com o patrimônio histórico. Descaso também produzido pela especulação imobiliária, essa “máquina de louco” que impede a memória de “respirar”, frente a seu único propósito, que é o lucro. Aspecto que podemos observar em qualquer cidade.

A história em chamas

No dia 2 de setembro de 2018, em pleno processo eleitoral para a escolha do presidente da República, o Museu Nacional, umas das primeiras instituições científicas do Brasil e um dos mais importantes museus da América Latina, ardeu em chamas. A causa teria sido um curto-circuito na parte elétrica, aspecto simples que qualquer manutenção corriqueira resolveria. O então candidato à época, que venceria o pleito daquele ano, se manifestou da seguinte forma: “já pegou fogo, quer que eu faça o que”? 

O incêndio do museu já virou passado, trouxe uma comoção a alguns poucos pesquisadores e pessoas que entenderam a dimensão dessa perda, no entanto, já caiu no esquecimento, virou um retrato fantasma. 

Prédio da União Protetora dos Artistas e Operários em Ilhéus 

Os patrimônios, assim como as datas comemorativas, nos ensinam sobre identidade, sobre quem somos, sobre aquilo que devemos ou deveríamos lembrar. Por isso, foi sintomático o desabamento ocorrido na cidade de Ilhéus, na Bahia, no dia 30 de abril de 2024, às vésperas das comemorações da luta dos trabalhadores. 

Não por falta de aviso e alerta, o prédio da União Protetora dos Artistas e Operário em Ilhéus, fundada em 1922, uma das entidades mais relevantes para a história do movimento operário da região, veio abaixo, virou escombros, não suportou o peso do descaso de uma cidade que completará no próximo mês 490 anos. 

Uma cidade que foi território das capitanias hereditárias, que vê sua considerável população indígena lutar pela demarcação de seu território sob as reclamações de muitos habitantes, que não entendem ou reconhecem o território indígena também como um patrimônio e um lugar de memória. Uma cidade que inaugurou o segundo Grupo Escolar da Bahia, em 1915, e cujo prédio, infelizmente, também sente o peso do descaso dos poderes públicos. 

Em dezembro de 2023, a rede Portal do Bicentenário: 200 anos de escolas públicas no Brasil, fez um ato em defesa desse patrimônio e alertou sobre a importância do prédio, que abrigava a Biblioteca Municipal da cidade e parte do arquivo histórico, mas atualmente está fechado e sem previsão de abertura. 

É sintomático que um prédio onde funcionou uma escola que foi símbolo do projeto republicano para a educação, onde funcionou uma biblioteca e o arquivo, ou seja, espaços de guarda da memória, esteja prestes a literalmente cair no esquecimento. É sintomático da perspectiva da sociedade atual, que uma cidade, a décima mais importante do estado da Bahia, não tenha uma biblioteca pública e vislumbre o desaparecimento de seu patrimônio. 

É preciso agir

O cerne da defesa do patrimônio passa pela defesa dos espaços públicos, do pertencimento da rua como nossa e não como lugar de ninguém, da noção de coletividade, de comunidade, enfim, da superação da ideia de que a saída está no campo do individualismo exacerbado. 

É preciso andar pelas ruas das cidades e percebê-las como parte de nós. A educação tem um papel fundamental nesse processo. Entrelaçar os fios entre patrimônio, educação, território, memória e identidade é a única chance para frear o processo de produção de esquecimento. É preciso agir, mesmo em meio às chamas e sob os escombros.
 

Marcelo Gomes da Silva é professor da Universidade Estadual de Santa Cruz – Ilhéus/BA e membro do Portal do Bicentenário: 200 anos de escolas públicas no Brasil

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Leonardo Fernandes