Somos de um país subdesenvolvido e temos muito trabalho a fazer
Ao nos depararmos com análises de organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, a respeito de países subdesenvolvidos, é muito comum encontrarmos os termos “países em desenvolvimento”, “países emergentes” e “países menos desenvolvidos” para se referir a eles. Essa nomenclatura acabou se tornando a regra e, frequentemente, a problemática do desenvolvimento vem sendo tratada nas reportagens, na mídia e no debate público com esses termos.
Quando lemos uma reportagem que afirma que o Brasil é um “país em desenvolvimento”, o que interpretamos? Que o processo de desenvolvimento brasileiro já iniciou e que, cedo ou tarde, estará concluído, nos restando apenas a tarefa de esperar até que alcancemos o nível de desenvolvimento dos países desenvolvidos.
Quando escutamos uma notícia que declara que a Índia é um “país emergente”, o que pressupomos? Que a economia indiana emergiu, isto é, que o crescimento do país passou a se destacar no cenário internacional, embora não tenha ainda ascendido ao patamar dos países desenvolvidos.
Quando a ONU coloca o Sudão do Sul entre os países menos desenvolvidos do mundo, o que pensamos? Que existe uma escala na qual os países são organizados por nível de desenvolvimento e a economia sul-sudanesa se encontra no final da lista, de modo que seu desenvolvimento implicaria em galgar posições dentro dessa escala.
Por meio dessas nomenclaturas que pautam a discussão internacional sobre economia e política, entendemos equivocadamente que o desenvolvimento é um processo automático, uniforme e natural, que destino é o mesmo para todos os países, bem como o ponto de partida. Acreditamos ilusoriamente que alguns já chegaram lá e estão esperando os outros alcançarem. Entretanto, nada disso é verdade.
Qual desenvolvimento?
O desenvolvimento não é automático. Ele exige pesquisa científica e um corpo técnico competente para diagnosticar e traçar diretrizes para o planejamento econômico. Exige investimento e delimitação de prioridades. Exige vontade política e enfrentamento das elites conservadoras internas para colocar em prática as ações necessárias.
O desenvolvimento não é uniforme. Ele depende das condições internas de cada região, sejam elas operacionais, como exemplo os recursos naturais disponíveis, a saúde e a escolaridade da população trabalhadora, as atividades econômicas que já existem na região, as condições de acesso à terra fértil, e as condições mercadológicas de circulação de mercadorias, ou questões mais amplas, como as instituições sociais existentes, a democracia e a legislação de proteção aos direitos do trabalhador.
Também depende de questões que são externas ao controle de uma região específica, como as relações comerciais e políticas estabelecidas com outros países.
O desenvolvimento também não é natural. Ele implica em uma luta por um lugar na dinâmica das relações de poder internacional. E para compreender isso, é imprescindível o termo “subdesenvolvimento”.
A periferia do sistema
O subdesenvolvimento é a condição da periferia no sistema capitalista, ou seja, é uma situação histórica particular que decorreu da difusão internacional do capitalismo por meio do processo de expansão imperialista colonial. A estrutura produtiva dos países colonizados se tornou dependente da orientação tecnológica das metrópoles, os recursos explorados eram direcionados aos colonizadores e, após as declarações de independência, a inserção dos países antes ocupados na divisão internacional do trabalho ocorreu de um modo subalterno.
Em geral, a estrutura produtiva dos países subdesenvolvidos é heterogênea, isto é, com níveis de desempenho e de tecnologia muito diverso entre indústrias e setores. Isso acontece porque as inovações tecnológicas adotadas nos países subdesenvolvidos são, originalmente, concebidas pelos países desenvolvidos conforme suas próprias necessidades de produção e consumo.
Assim, como a tecnologia se atualiza em fluxo contínuo, os países subdesenvolvidos estão permanentemente procurando alcançar as últimas tendências. Isso cria uma série de distorções como, por exemplo, a adoção de máquinas e equipamentos destinados a poupar trabalho humano em países com alta taxa de desemprego.
Além disso, outra característica marcante dos países subdesenvolvidos é a acentuada desigualdade social. Isso se deve não só à orientação tecnológica, mas a um reflexo da aclimatação do capitalismo nos países periféricos, onde o trabalho vale menos e as elites estão mais preocupadas com a emulação do padrão de vida das elites centrais do que com o desenvolvimento do próprio país.
Diante desse quadro, o subdesenvolvimento, como apontava o economista Celso Furtado, não é uma etapa e, por isso, os países não podem ser mensurados em intensidade ou graus de desenvolvimento. Isso porque o desenvolvimento e o subdesenvolvimento são duas estruturas diversas que dependem uma da outra para continuar existindo.
Assim como o capitalismo é um sistema que depende da existência do desenvolvimento e do subdesenvolvimento para alimentar a acumulação, o desenvolvimento fornece amplo mercado consumidor, produção de inovações nos processos produtivos e criação de novas necessidades de consumo, enquanto o subdesenvolvimento fornece mão-de-obra barata, matéria-prima e recursos naturais de baixo custo para serem explorados. Não é possível existir todas essas características em uma mesma estrutura econômico-social. A desigualdade é fundamental nessa equação.
Não podemos perder de vista que o desenvolvimento é, acima de tudo, uma questão de política externa. Os países que hoje são desenvolvidos nunca estiveram, historicamente, na mesma situação que a dos países subdesenvolvidos. Os países europeus desenvolvidos o são porque foram vanguarda na repartição do mundo entre si com propósitos colonialistas.
Alguns países fora do eixo europeu conseguiram se desenvolver atuando, eles mesmos, como imperialistas dentro de suas respectivas áreas de influência, como é o caso do Japão com outros países do leste e sudeste asiático e dos Estados Unidos com a América Latina. De resto, a condição dos países que sofreram com a exploração imperialista é o subdesenvolvimento.
E a transição do subdesenvolvimento para o desenvolvimento é dificilmente concebível sem articulação e esforço político, inclusive um esforço em nível internacional, porque ele tende a se reproduzir no tempo e no espaço, e aprofundar suas estruturas permanentemente.
Discurso chapa-branca
Desde os anos 1990, o termo “subdesenvolvimento” vem perdendo espaço nas discussões sobre política externa, substituído por termos que carregam um significado aparentemente neutro, como é o caso de “países em desenvolvimento”, “países emergentes” e “países menos desenvolvidos”.
A escolha da utilização de uma nomenclatura mais chapa-branca implica em escamotear a discussão de poder geopolítica, esquecer as raízes coloniais e apagar a noção de que o capitalismo precisa da dicotomia desenvolvimento-subdesenvolvimento para continuar se reproduzindo. Não podemos nos esquecer que a escolha da linguagem e do vocabulário subjaz afinidades ideológicas e interesses políticos.
É por isso mesmo que usar o conceito “subdesenvolvimento” é uma escolha política. Ele carrega um significado mais forte, uma noção de imobilidade, de um tipo de desenvolvimento que tem características limitadoras para o potencial da vida humana. A utilização desse termo deixa implícito que sair dessa situação não é trivial, que sentar e esperar não é suficiente. Falar em subdesenvolvimento significa reconhecer que existe um conflito de poder que, interna e externamente, limita nosso escopo de atuação política de forma deliberada.
E digo “nosso” porque não parece possível pensar o Brasil fora da chave do subdesenvolvimento. O Brasil é um país de dimensão continental, com a sétima maior população mundial, riquíssimo em recursos naturais, autossuficiente em grande parte das culturas agrícolas consumidas internamente e grande produtor de petróleo. O potencial para superar o subdesenvolvimento é imenso.
Imensos também são os interesses internacionais em exercer aqui suas influências, provenientes de diversas fontes. A escolha de uma linguagem que suavize todas essas questões nos impede de tomar consciência tanto do quadro no qual nos encontramos quanto do lugar que pretendemos e podemos chegar.
Não somos um “país emergente”, não somos um “país em desenvolvimento” e também não somos um “país menos desenvolvido”. Somos um país de raízes coloniais, com uma história de séculos de escravidão e com o período republicano do século passado marcado pela submissão aos desmandos do governo dos Estados Unidos, que nos rendeu 20 anos de ditadura civil-militar. Isso não pode ser esquecido. Somos um país subdesenvolvido e temos muito trabalho a fazer para conseguir superar o subdesenvolvimento.
Isadora Pelegrini é doutoranda em economia na UFMG e membro do Instituto Economias e Planejamento.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
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Edição: Leonardo Fernandes