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Coluna

A qualidade da formação a distância

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Foto: Álvaro Henrique - Reprodução / Secretaria de Educação do DF
A defesa dos interesses privados segue no centro das ações

Há algumas semanas, o Ministério da Educação (MEC) homologou mudanças nos cursos de licenciatura na modalidade a distância (EAD). O debate não é exatamente novo, e é fácil que a análise rasa encontre adesão em torno do repúdio a essa modalidade de curso. Duas décadas de experiência no assunto, no entanto, me fazem crer que, se a preocupação em melhorar a formação docente é legítima, o diagnóstico do problema, por sua vez, está equivocado.

Meu início como professora do ensino superior foi em um curso de pedagogia oferecido por uma instituição privada extremamente entusiasta das novas tecnologias. Os gestores da instituição não escondiam a intenção em ampliar a abrangência das matrículas pelas possibilidades de aumentarem lucros. Isso corroborava com minhas ideias prévias e preconceituosas em relação à EAD. 

Até então, eu considerava que esses cursos eram apenas um modo de instituições privadas ganharem muito dinheiro sem nenhum compromisso com a qualidade da formação oferecida aos estudantes.

No entanto, na mesma instituição, conheci colegas, doutores em educação, cujo tema de pesquisa eram as novas tecnologias e as potencialidades dos cursos EAD. Eram pessoas sérias, comprometidas com educação e que conheciam bem os limites e as vantagens desses recursos. Sabiam também dos limites para convencer uma instituição que visa lucro a implantar com responsabilidade essas inovações.

O fato é que essa experiência me ensinou que esse não é um tema que se divide entre bonzinhos e malvados e que o problema, em geral, não está no uso das tecnologias, e sim, na ambição de ganhos dos capitalistas que querem fazer da educação um negócio lucrativo. 

Lucro versus qualidade

Aí já temos um primeiro ponto que merece sempre ser lembrado: educação não pode ser um negócio que vise lucro, porque o lucro em uma empresa que vende educação é sempre em detrimento da qualidade do serviço ofertado. 

Dito de outro modo: para dar lucro, uma empresa de educação precisa economizar em material didático, em recursos pedagógicos e, o que é pior, na remuneração dos profissionais que ela contrata. 

Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde sou professora há quase 14 anos, também atuo, de tempos em tempos, em cursos de formação de professores na modalidade EAD. Mais uma vez, a experiência foi rica em me apresentar colegas que coordenam e atuam nesses cursos e que são competentes e comprometidos. A diferença, fundamental, é que se trata de uma universidade pública e, portanto, não há interesse em obter lucro com esses cursos. 

Em termos de qualidade do ensino, há desafios reais a serem transpostos. E muitas soluções criativas e eficazes têm sido implementadas pelas equipes desses cursos ao longo dos anos. Os resultados não desabonam, de modo algum, a formação oferecida. Mas não se pode negar que uma das principais dificuldades é que os estudantes tenham efetivamente tempo para dedicar aos estudos. Em sua grande maioria, são estudantes-trabalhadores cuja semana é praticamente inteira dedicada aos compromissos profissionais e ao cuidado da família. 

Vale lembrar, por outro lado, que essa não é uma realidade alheia aos cursos presenciais. Ou seja, esse fato tem sido muito desafiador em qualquer contexto e pouco temos discutido a respeito. 

Propaganda enganosa

A propaganda de cursos EAD flerta, tanto em instituições públicas como privadas, com um desejo, compreensível, mas irreal, de que seja possível se formar em nível superior sem dedicar bastante tempo aos estudos. 

O fato dessa modalidade possibilitar alguma flexibilidade nos horários dedicados ao curso não significa nenhuma magia que permita multiplicar as 24 horas de um dia ou dispensar longos momentos de efetivo estudo. 

Não há aprendizagem sem estudo, sem horas dedicadas realmente àquele conhecimento novo que o estudante anseia ter quando se matricula em qualquer curso. Esse é o segundo ponto que eu não poderia deixar de lembrar aqui.

Ponto crítico

Quero, por fim, ressaltar ainda um terceiro ponto: de acordo com o anúncio feito pelo MEC, o plano é que todo curso de formação de professores tenha no mínimo 50% de aulas presenciais. Acho que aqui é que está o erro em termos de alvo. 

Veja, que não sobrem dúvidas, considero essencial que a formação de professores incorpore sempre muitas horas de diálogo qualificado sobre educação e reflexão partilhada. Para além, obviamente, das necessárias horas de estudo individual, à moda antiga, que também segue sendo uma necessidade incontornável na formação docente. 

Mas, afinal, não é a distância que nos impede de promover essa interlocução qualificada. Atualmente, há muitas formas de nos mantermos em contato e de fazermos discussões on-line, apesar das distâncias. 

O problema, que nesse debate continua na sombra, é a relação quantitativa professor-estudante e a formação dos professores que atuam nesses cursos. E, nesse caso, o MEC não pode alegar desconhecimento. 

O Censo do Ensino Superior nos informa que, nos cursos EAD das instituições públicas, a relação é de um professor para cada 34 estudantes. Já nas instituições privadas, essa relação passa a ser de um professor para cada 171 estudantes. Ora, como fazer debate qualificado com essa quantidade de estudantes?

Além disso, o total de professores com doutorado é bem menor nas faculdades e universidades privadas; muitas das quais aumentam seus lucros fugindo de pagar professores qualificados. Nessas, o percentual de professores doutores é 25,9%, enquanto nas instituições públicas esse número sobe para 64,3%. 

Mas a situação é ainda mais grave, já que em grande parte dos cursos EAD os professores não interagem efetivamente com seus estudantes. O que eles fazem é gravar aulas, que podem ser ótimas, mas em que não há nenhuma possibilidade de troca de ideias. Quem interage com os estudantes são tutores, cuja formação não tem entrado nesse debate. 

É evidente, portanto, que se isso não for alterado, ficaremos apenas no nível da maquiagem. Nas instituições que visam lucro, essas horas vão ser preenchidas por tutores que não têm formação equivalente aos professores do ensino superior. Portanto, se o MEC tem mesmo preocupação com a qualidade da formação docente, não é aumentando as horas presenciais que isso vai ser resolvido. Esse é um grave engodo, que faz parecer que existe compromisso com a educação básica quando, na verdade, a defesa dos interesses privados é que segue no centro das ações.
 

Natália Gil é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do grupo de pesquisa “HISTEB - História da escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados”. Tem se dedicado a investigar a história da exclusão na escola brasileira e as implicações dos processos de quantificação em educação.

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Leonardo Fernandes