Recursos que hoje vão para infraestrutura pouco sustentável precisam de gestão coletiva
Chuvas mais intensas a cada ano, enchentes devastadoras e estragos em toda parte – eis um cenário tão comum nas nossas cidades que tende a ser visto como coisa inevitável. Porém, se revertermos nosso padrão de urbanização, as cidades podem, sim, conviver com suas águas pacificamente.
Então, como encaminhar alternativas? A resposta não está nas grandes obras de drenagem urbana, alheias ao debate público e a demandas sociais e ambientais. É preciso estender as instâncias de decisão e ação a todas as pessoas que habitam as bacias urbanizadas.
A própria estrutura em rede das bacias hidrográficas oferece a matriz espacial para essa democratização: uma bacia contém sub-bacias, que se dividem em microbacias, que, por sua vez, se subdividem em porções ainda menores. Tais porções, que denominamos circunstâncias, são áreas de contribuição facilmente reconhecidas na escala do cotidiano, nas quais a gestão coletiva das águas pode se basear.
Imaginemos um cenário em que essa organização local estivesse consolidada. As pessoas moradoras conhecem sua circunstância ‘como a palma da mão’. Sabem qual é sua posição relativa dentro da bacia maior, têm ideia do tipo de subsolo, das declividades, dos pontos críticos, do sistema viário, da forma de ocupação e dos cuidados que aquela circunstância exige.
Se estiverem numa parte alta da bacia, como um topo de morro, priorizam a infiltração para a recarga das nascentes. Se estiverem à meia encosta, entendem que cabe reter as águas para reduzir seu volume e sua velocidade em momentos de chuva. Se estiverem no fundo de vale, vulnerável a inundações e deslizamentos, dão mais atenção a dispositivos de resiliência e às chamadas conexões de fundo de vale.
As características de cada circunstância e os respectivos grupos organizados seriam a base do manejo das águas urbanas. Cada circunstância teria relativa autonomia, ao mesmo tempo que estaria articulada às porções vizinhas e à rede mais ampla das águas e da cidade. Laços e alianças ‘circunstanciados’ facilitariam o debate, inclusive de interesses conflitantes.
A alternativa acima esboçada tem por premissa a ampliação do conhecimento acerca da dinâmica das águas, não no sentido da difusão de teorias científicas genéricas, e sim no de uma pedagogia de mão dupla que faça jus ao saber local.
Moradores conhecem mais que especialistas
São inúmeros os eventos hídricos circunstanciais que os moradores conhecem melhor do que qualquer especialista: as nascentes nos quintais, a mudança do córrego ao longo do tempo, a baixada em que as plantas crescem melhor, a encosta perigosa da vizinhança e assim por diante. Portanto, é preciso articular essas experiências concretas à perspectiva da hidrologia e do planejamento, e isso depende de canais de diálogo. Cabe aproximar os técnicos dos meandros do lugar real, e cabe aproximar os ditos ‘leigos’ de recursos técnicos.
Os nexos entre diferentes escalas, que naturalmente constituem as bacias hidrográficas, se estendem aí a nexos cognitivos, sociais e políticos entre pessoas e instituições que fazem nossas cidades.
O projeto Águas na Cidade, do Grupo MOM (UFMG) em parceria com escolas da rede pública de Belo Horizonte, deu início a essa empreitada em 2016. Produzindo interfaces físicas e digitais, ele tem sensibilizado estudantes, professores e outras pessoas interessadas. Mapas interativos, simulações, maquetes, vídeos de sobrevoos e medidas difusas de manejo se unem a memórias, acervos familiares, notícias de jornal e incursões em campo.
Da festa ao fórum político, ideias se aglutinam para ampliar o conhecimento de cada circunstância. O horizonte é a autonomia dos grupos locais e seu fortalecimento por políticas públicas.
Isso, no entanto, depende também da democratização das decisões sobre os recursos públicos. Os recursos que hoje se esvaem na construção de uma infraestrutura pouco sustentável deveriam se tornar objeto de gestão coletiva – assim como as águas.
Roberto E. dos Santos e Silke Kapp são professores da Escola de Arquitetura da UFMG e pesquisadores do Grupo de Pesquisa MOM (Morar de Outras Maneiras)
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Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida