Precisamos considerar as potencialidades plurais das muitas histórias que compõem a realidade
por Cleiton Donizete Corrêa Tereza
Já tem algum tempo que as reflexões sobre o perigo de uma história única ganharam amplitude, para além dos estudos e debates acadêmicos. O depoimento da escritora feminista nigeriana Chimamanda Adiche contribuiu fundamentalmente para isso.
O vídeo de sua participação no evento intitulado TED (Technology, Entertainment, Design) ganhou o mundo e chegou também às escolas, nosso estimado espaço para o conhecimento e a conscientização.
Chimamanda disse sobre como lia histórias europeias, de pessoas brancas, ambientadas em outro clima, com outras características. Compartilhou também sobre sua experiência enquanto estudante nos Estados Unidos e como as pessoas a enxergavam: uma africana. Desconsiderando toda a diversidade do continente.
A escritora, corajosamente, falou também sobre como ela mesma reproduziu a lógica da redução estereotipada quanto os mexicanos, e como se sentiu envergonhada ao perceber que havia assimilado uma história única a respeito deste país e seus habitantes.
Permanecem as fortes tendências de reprodução da história única
Com maestria, expôs as mazelas provocadas pela ação do imperialismo, trazendo questões cotidianas extremamente tristes, mas insiste que as experiências vão muito além disso. Se queremos realmente entender, precisamos considerar as potencialidades plurais das muitas histórias que compõem a realidade.
Reprodução da história única
Entretanto, ainda me espanta como mesmo depois desse tipo de reflexão, e de tantos outros estudos que questionam o colonialismo e a colonialidade, permanecem as fortes tendências de reprodução da história única. E não estou dizendo isso me referindo aos que se orgulham de sua brutalidade.
Quantas vezes continuamos a reproduzir que Poços de Caldas é a cidade das águas termais, das delícias mineiras, com ares europeus, e nada muito mais que isso. Que Maceió é terra somente de curral de oligarcas, falésias e águas caribenhas de Maragogi. Ou que em Porto Alegre existem apenas pessoas brancas, chimarrão, danças folclóricas européias e vinhos tradicionais.
O que enfatizo com essas reduções enganosas é que persiste fortemente a dificuldade de compreensão das diversidades, contradições, reveses e multiplicidade dos percursos históricos, das culturas, das classes, de outros territórios, etnias e identidades nacionais, considerando a própria constituição brasileira.
Como contrapor essas concepções tão impregnadas, tão calcificadas, sobretudo pela operacionalização capitalista de produção cultural midiática, com vistas à manutenção de poderes políticos e formas de sociabilidade exploratórias?
Cabo Verde: resistência negra e indígena
Existem inúmeras iniciativas de contraposição, entretanto, vou compartilhar uma que, para mim, é bastante singular. Entre outras questões, porque se trata da construção da cidade de Cabo Verde, em Minas Gerais, onde nasci e cresci, e que por gerações afirmava suas origens com base no mito do cabo de enxada que brotou milagrosamente.
“Oh, Cabo Verde!” Essa teria sido a exclamação síntese para a perpetuação de uma memória comunitária da narrativa idílica, de caráter místico e agrícola. A fundação conferindo o eterno destino: permanências e ponto. Nada pode ser diferente.
Diante desse fatalismo, proporcionado estruturalmente pela repetição de uma história única, os professores e pesquisadores Luís Eduardo de Oliveira e Lidia Maria Reis Torres construíram um documentário corajoso que contrapõe a história única ainda prevalecente nesse pequeno município conservador, com cerca de 13 mil habitantes, marcado pela atividade agrícola do café.
“Presença e (r) existência negra e indígena em Cabo Verde, Minas Gerais” é uma produção dividida em duas partes, a primeira, “Quando bate a alfaia Caiapó: presença e resistência negra e indígena” e, a segunda, “Nas contas do Rosário: espaço de memória, fé e (r) existência negra”, fomentado por meio da lei Paulo Gustavo, com recursos do Ministério da Cultura do Governo Federal.
Negros e indígenas foram primeiros povoadores de Cabo Verde
Em um dos pontos altos do filme, com a participação do historiador Tarcísio de Souza Gaspar, é apontada a possibilidade de que as origens do povoamento na região de Cabo Verde, no sul do estado de Minas Gerais, tenham ocorrido a partir de movimentos de interiorização, por consequência de conflitos entre forças colonizadoras escravocratas e quilombolas. Esses negros então teriam dado origem à ocupação na região e seriam, portanto, os primeiros povoadores.
O documentário traz como importantes contribuições, informações sobre essa origem negra e quilombola no município, a relevância fundamental do trabalho dessas populações, a presença (e negação) da participação indígena, a continuidade de manifestações culturais que instigam perguntas, a religiosidade, a imaginação, a guerra, a festa! Mesmo diante de todo movimento de apagamento promovido pelo agro-capitalismo.
Como afirmam Luís Eduardo e Lidia Torres, a história desse município é marcada pela continuidade das narrativas de um conservadorismo colonial, difundida como terra do café – e com a atual onda de gourmetização, terra dos cafés especiais, como anuncia o site da Prefeitura – reafirmando a história sob a perspectiva dos homens brancos proprietários e cristãos.
Trata-se da persistência do processo violento de colonização e de todo o morticínio causado, que aprisiona a comunidade.
Vejam, não é nossa terra, nossa cidade: é terra do café. Isso quer dizer, dos cafeicultores, dos negócios da economia cafeeira (bancos, “cooperativas”, empresas de insumo, equipamentos, maquinários etc).
E se o café for considerado a principal riqueza, certamente também precisamos entender que configura uma grande limitação. Uma sociedade que, com base em sua materialidade, condiciona ou expulsa, ao seguir como uma comunidade desigual e seletiva.
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Uma parcela privilegiada das famílias ainda vistas como tradicionais continua detendo terra, riqueza e prestígio, com a companhia dos “novos ricos”, muitos deles prestadores de serviço de diversos tipos ou funcionários públicos com alguns privilégios, reproduzem os comportamentos de diferenciação social, inclusive por meio de uma escolarização básica em instituições privadas. Continuamente se gabam de suas origens europeias, mantêm-se ou querem figurar nos nomes das ruas, parques, praças e escolas.
Enquanto outra parcela, a maioria, composta por pessoas negras, pardas, mestiças e brancos pobres, que constroem, limpam, carregaram, organizam, cozinham, cuidam, alegram e movimentam o município, quando não se acabam no álcool ou em outro infortúnio, têm suas origens e contribuições negadas sob os mesmos velhos signos da cruz, do agro, do autoritarismo, do racismo.
Essas barreiras se manifestam especialmente na falta de representatividade política, sobretudo em termos de ideais, reinando a homogeneização conservadora de horizontes limitados.
Contudo, por meio da educação e da pesquisa, desenvolvida por programas e jovens talentosos e resistentes, temos novas perspectivas sendo embasadas e difundidas para contar, superando o aprisionamento e a segregação dessa envelhecida e errônea história única.
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Cleiton Donizete Corrêa Tereza é professor de História nas redes municipal e estadual em Poços de Caldas, especialista em História Contemporânea (PUC Minas), especialista em Planejamento, Implementação e Gestão de Educação a Distância (UFF), mestre e doutor em Ciências Humanas (Diversitas-FFLCH-USP), integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração Escolar (GEPAE-USP), membro do Coletivo Educação de Poços de Caldas e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
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Leia outros artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Ana Carolina Vasconcelos