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Coluna

Os povos de terreiro detêm tecnologias ancestrais de sobrevivência

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Foto - Rafa Stedile
Os terreiros são centrais na proteção e preservação do meio ambiente

Peço a licença aos meus mais velhos, para compartilhar algumas reflexões sobre as vivências no 3º Ègbé, Encontro Nacional de Povos de Terreiro, que teve como lema “Nós Somos” e foi realizado sob a organização do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileiro (Cenarab), em articulação com movimentos sociais negros e outros parceiros. 

Definido como um encontro do pensar entre pessoas que buscam a unidade e as possibilidades de estarmos de fato sendo parte de um coletivo de ideias a partir do nosso sagrado, na primeira edição do Ègbé, que aconteceu em 2019 com o lema “Eu e o outro”, estávamos em outro momento político, após a disputa eleitoral que elegeu Bolsonaro presidente e com poucas possibilidades de interlocuções sociais. 

No entanto, o que nos uniu foi o esforço coletivo e a compreensão de que não estamos sós, fazemos parte de um pensamento e construímos diálogos de resistência social e política. Logo, denunciar abusos e arbitrariedades, e propor formas de resistência e organização nos pareceu uma construção democrática viável, diante da nossa diversidade e pluralidade.

Nosso povo precisa estar alerta

Dois anos depois, em 2022, o 2º Ègbé, com o lema “Parte de nós”, reforçou a compreensão dos terreiros, espaços sagrados, como um espaço social, cultural e político de produção e reprodução da vida nas suas indiferenças, mas também suas similaridades. 

Afinal, o todo deve ser compreendido como parte de nós. Vale lembrar que foi um ano das eleições gerais e o mesmo fórum se comprometeu com a defesa da democracia brasileira. Foram discutidos temas como racismo ambiental, intolerância religiosa e o fomento de políticas públicas para esses povos.

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Pois bem, neste ano, chegamos ao 3º Ègbé com o intuito de debatermos, refletirmos e nos organizarmos como povos de terreiro dentro de um complexo sistema social e político brasileiro, reafirmando a nossa resistência na luta pela nossa história, nossa tradição e identidade. 

No campo ideológico, saímos do encontro com uma carta que sintetizou muito bem os desafios políticos de nosso tempo. Nosso povo precisa estar alerta à tentativa de transformação do Estado em uma “teocracia fundamentalista”, polarizada por segmentos evangélicos neopentecostais que promovem o racismo e a violência contra povos de terreiro. 

Também é preciso ter atenção ao “boicote sistemático” à implementação do ensino da história da África e das culturas afro-brasileiras e ameríndias no currículo escolar.

No entanto, me parece que precisamos avançar em largos passos para materializar a unidade das ações táticas para enfrentar no cotidiano essas questões. Durante a atividade, ficaram nítidos os desafios dos povos de terreiro no que se refere ao tema dos direitos humanos e do combate ao racismo religioso. 

Também chamaram a atenção a necessidade de incidência no cenário político eleitoral, para que esses povos e territórios sejam devidamente respeitados, bem como o debate sobre a crise climática.

A resistência do terreiro é a continuidade da comunidade

Sem folha não tem Orixá, não tem Nkisi, não tem Voduns. Portanto, os terreiros são centrais na proteção e preservação do meio ambiente. Mas, em tragédias e crimes ambientais, como ocorreu no Rio Grande do Sul, são os últimos a receberem auxílio.

E sabem porquê nós somos os últimos? Porque estamos à margem, fomos expulsos do centros para as periferias. Isso nos leva a importância de sempre afirmar que a história da perseguição aos povos de terreiro no Brasil é também a história do racismo, pois essas são, sobretudo, tradições negras e indígenas. 

Portanto, a construção da unidade em nosso campo passa por compreendermos o papel do racismo como ferramenta de manutenção da opressão e de violência contra as nossas tradições.

Precisamos nos lembrar que nossos ancestrais foram resistência

Mas, como a própria apresentação do Ègbé já diz, a resistência do terreiro é a continuidade da comunidade. Resistir aqui significa forjar nossa existência fértil em terrenos secos e violentos. 

Toda vez que quebram ou queimam um terreiro, que querem nos obrigar a abrir mão de nosso sagrado por julgamento moral de terceiros sobre o que é direito diante de nossas crenças, precisamos nos lembrar que nossos ancestrais foram resistência, forjaram formas de sobrevivência, quando também mataram e escravizaram o nosso povo. Isso é tecnologia ancestral de sobrevivência que os nossos territórios detêm.

Penso que mais do que a beleza e força dos dias compartilhados, em nós ficou o desafio de fazer como nossos ancestrais nos ensinaram, e desafiar continuamente, questionando os processos normativos que nos matam. 

Porque, se a presença de 500 representantes de povos de terreiros em um único espaço não foi suficiente para nos fazermos escutados, o que será? Como sujeitos plurais e diversos que somos, pode ser que as respostas sejam forjadas até o próximo encontro.

Iris Pacheco é jornalista, especialista em Teologia das Religiões Afro-Brasileiras e especialista em Estudos Latino-Americanos. É comunicadora popular e internacionalista na Zâmbia.

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Leia outros artigos de Iris Pacheco em sua coluna no Brasil de Fato MG

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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

Edição: Ana Carolina Vasconcelos