Minas Gerais

Coluna

Condensação de memórias e futuros possíveis

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Obra “Casa de meus avós”, de Hamilton V. Neves (2019) - Imagem do autor.
A gente está sempre a olhar para o umbigo

Por Luciano Mendes

Na semana que passou, fui invadido por um turbilhão de lembranças. Vieram em revoadas, a assustar o meu sossego.  Viagens, visitas, encontros e conversas. Meias palavras, furtivas mãos que se buscam, muitos silêncios e memórias que dão conta de esquecimentos.

Uma viagem com minha mãe, meu pai, e uma irmã querida, já que a outra roeu a corda. Começou antes mesmo da partida. Convencer a matriarca a sair de casa às vésperas de seus 90 anos, para encontrar com irmãs da mesma geração, não é tarefa fácil. 

De outra parte, convencer o patriarca que, desta vez, a viagem é “dela”, para os parentes “dela”, e que os dele terão que ficar para a próxima, foi outro acontecimento.

Dos encontros delas e deles, do turbilhão de sentimentos que os afetos positivos, mas também os negativos, provocam, pouco sei, porque palavras poucas comunicam muito, mas sabe-se parcialmente. 

Voltar às raízes é para as pessoas fortes, e as longevas lá já estão. Basta cavucar, escavando fundas lembranças, acontecimentos de tempos idos, doloridas também, ainda que não só e, talvez, nem fundamentalmente.

A gente envelhece. Se não, essa coisa chamada vida tomaria outro rumo, o da morte, que por certo vem, mas que tardar pode muito. Mas não sou daqueles que acham que o passado era melhor. 

Ah! Nos tempos da infância é que era nem sempre bom, nem sempre ruim. Era a vida seguindo o curso. Mas nesses dias idos, os últimos, as lembranças voltaram, fugiram do esquecimento e se fizeram corpo.

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Ouvi muito, mas pouco estou contando. Foram histórias de outra gente que, sem saber, hoje se reconhecem nas cicatrizes do corpo e no faltar da memória. Mas do que vi, me lembrei que as obras de arte, da literatura à pintura, passando pela escultura e pelo teatro, e todas as demais, condensam tempos, condensam vidas, condensam memórias.

Na casa de uma das tias, há um quadro, que ilustra este artigo, que descontextualizado da sala em que habita e pelos olhares que o capturam, me fez viajar no tempo. 

Representa, um tanto quanto estilizada, pois por demais colorida, a “casa da vovó”, como todos diziam (e ainda dizem) daquele casarão branco e azulado para o qual nos dirigíamos a família inteira, uma vez por ano, e nunca, ou quase nunca, mais do que isso.

A distância que separava nossa pequena casa, em Pocrane, do casarão dos avós, no Tabajara, parecia imensa. Muitas léguas a percorrer no lombo de cavalos ou embolado em um Jeep, daqueles do tempo do onça, solidariedade de um amigo e compadre. Hoje sei que são pouco mais de 40 quilômetros e me assusto, ressentido, com nossas ausências.

Eu tinha talvez cinco ou seis anos e me vejo sentado no colo de meu tio Nenzinho, chorando copiosamente para voltar para casa. O motivo não sei, mas chorava, e é disso que me lembro. 

É a essa cena que a casa me leva, ainda que não apenas. Monjolo, córrego, frutas várias, um assoalho alto, que permitia cuidar de cavalos sob ele, e os inesquecíveis biscoitos de polvilho, assados no forno à lenha sobre a folha da bananeira.

Em uma das viagens, acompanhei meu primo à escola. Caminhada longa, poeira e muitas curiosidades. A escola, uma sala e todas as crianças juntas.  A professora, cuidando de todas, mas dela pouco me lembro. Depois vim saber de escolas multisseriadas, e que o Brasil profundo era aquele que me habitava, e disso fiz objeto de estudos e histórias, minhas e de outras pessoas. 

Nunca me esqueço: a gente está sempre a olhar para o umbigo. Mesmo quando o assunto parece surgir de infindáveis discussões teóricas e metodológicas, ou mesmo quando nossas justificativas são plausíveis e justificadoras, estamos sempre a olhar para o umbigo.

Talvez não seja por acaso, aliás, nunca é, que em meio a esforço de cuidados, e descuidos muitos, me vi pensando: e quando chegar a minha vez, quem cuidará? As lembranças são sempre acionadoras de futuros possíveis e de passados inventados. Viver na lembrança ou na expectativa é caducar de véspera.

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

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Leia outros artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Ana Carolina Vasconcelos