Minas Gerais

Coluna

Rio abaixo não mora o inimigo

Foto: Jefferson Rudy - Reprodução/ Agência Senado
Talvez você não saiba como e onde é manejado o lixo que você produz

Por Margarete Leta e Tiago Castelo Branco Lourenço

Se você mora em um grande centro urbano, é provável que desconheça o destino das águas que circulam por sua casa para alimentar banheiros, cozinhas e lavanderias. Para onde e como seguem após descartadas, transportando sua carga de gorduras, detergentes e coliformes fecais?

Talvez você também não saiba como e onde é manejado o lixo que você produz ou mesmo para onde vão as águas das chuvas, cujo acesso ao solo, seu reservatório natural, está bloqueado por pavimentações.

Na melhor hipótese, o esgoto de nossas casas não é lançado in natura em um curso d’água, segue em tubulações e interceptores até uma estação de tratamento. Já o nosso lixo, vai para um aterro sanitário; águas pluviais não infiltradas correm rio abaixo e são, eventualmente, interceptadas por uma grande estrutura de drenagem.

Todo esse percurso, desde os pontos de geração até os locais de acomodação, impacta várias porções do território. Em Belo Horizonte, por exemplo, dejetos de moradias próximas à divisa com Contagem percorrem aproximadamente 20 quilômetros ao longo de interceptores às margens do Ribeirão Arrudas até as proximidades da divisa com Sabará, rio abaixo.

Os investimentos públicos já feitos não equacionam os problemas urbanos

Lá se juntam, em uma estação de tratamento, à contribuição de um milhão de outros cidadãos. Imagine morar nas vizinhanças de uma estrutura dessas!

Esse é o modelo de gestão das modernas metrópoles brasileiras. Exportamos nossos excedentes "não úteis" e os concentramos em grandes estruturas, piscinões para amortecimento de cheias, (mega) aterros sanitários ou unidades de tratamento de lixo e entulho, (mega) estações de tratamento de esgoto ou de captação e tratamento de águas.

Os significativos investimentos públicos já feitos não equacionam os problemas urbanos. Na realidade, frequentemente, os acentuam, geram novos ou simplesmente os transferem para longe de nossos olhos. Além disso, frequentemente tais estruturas são instaladas na vizinhança das populações trabalhadoras pobres das nossas cidades.

Não exportar problemas

É possível acomodar os subprodutos da nossa atividade cotidiana nos próprios locais de sua geração? Como manejá-los localmente, minimizando ou mesmo neutralizando seus impactos negativos e, sobretudo, não os transferindo rio abaixo?

Significaria reduzir a dependência de sistemas de gestão urbana centralizados e apostar na gestão por micro unidades hidrográficas, as chamadas microbacias. Essas são escalas apreensíveis e operáveis por grupos sócio-espaciais cujas ações afetam diretamente território e vida cotidiana.

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Com aporte de recursos públicos, a autogestão articularia saberes locais e técnicos, sobretudo para reconhecer a capacidade de suporte oferecida pelo território à acomodação dos impactos negativos aí gerados.

O conhecimento de sistemas alternativos em escalas proporcionais a microbacias, em substituição aos grandes complexos, pode se revelar insuficiente num primeiro momento, sobretudo no caso de sistemas de saneamento. A gestão urbana hegemônica inibe a investigação, experimentação e aperfeiçoamento de soluções baseadas em outros pressupostos.

Para dissipar incertezas quanto às suas condições de aplicabilidade, sistemas alternativos poderiam ser aplicados em escala experimental. Por que recolhemos em um mesmo sistema as águas de pias, chuveiros e vasos sanitários, se sabão e detergentes exigem tratamentos distintos daqueles utilizados para eliminar coliformes fecais?

Destiná-las e tratá-las em um único sistema amplia o problema. Nesse caso, a individualização dos sistemas domésticos e o tratamento independente dos esgotos poderiam ser testados para um pequeno agrupamento de moradias, avaliando-se as implicações e comparando-as aos sistemas atualmente empregados. 

Experimentações como essa teriam como princípio "não exportar problemas", pressuposto que dá título a este artigo e que remete à defesa do geólogo e professor Edézio Teixeira de Carvalho aos assentamentos geossuportados, ou seja, aqueles em observância à capacidade de suporte oferecida pela plataforma geológica.


Margarete Leta e Tiago Castelo Branco Lourenço são professores da Escola de Arquitetura da UFMG e pesquisadores do Grupo de Pesquisa MOM (Morar de Outras Maneiras).

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Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Ana Carolina Vasconcelos