O livro foi escrito no fim do século XIX, quando era raro termos autoras mulheres
por Natália Gil
Quase tão agradável como ler um bom livro, é poder conversar sobre ele com alguém que a gente ama.
Recentemente, li “A falência”, um livro publicado em 1901 por Júlia Lopes de Almeida. Nunca tinha ouvido falar desse livro e tampouco conhecia a autora. O texto apresenta como protagonista um homem que enriqueceu como comerciante de café no século XIX e tem como centro da narrativa o cotidiano de sua família no Rio de Janeiro.
A autora, nascida em 1862, foi uma escritora brasileira que circulava na cena literária carioca e uma das idealizadoras da Academia Brasileira de Letras.
Ocorre que um dos meus filhos também estava lendo esse livro e, entre uma e outra atividade comum da vida, acabou acontecendo de conversarmos sobre essa leitura.
Muitas vezes, essas conversas se passam à mesa, o que associa dois prazeres que partilho com eles: comer e conversar sobre a vida, sobre filosofia, sobre história, sobre música e sobre livros.
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Atualmente, partilhar essa experiência leitora ultrapassa muito o quadro de uma tarefa educativa da qual, como mãe-professora, sempre me senti imbuída. Falo dessa indisfarçável ansiedade de aproveitar qualquer ocasião para ensinar algo a mais para os filhos.
É certo que a leitura compartilhada e a conversa surgiram realmente dessa ansiedade (sou daquelas mães que lia para os filhos quando eles ainda nem sabiam falar), mas tem muito mais que isso, porque já faz um tempo que nem sempre sou eu quem ensina.
A capacidade que eles têm de me mostrar outros ângulos é inegavelmente um fato. E, às vezes, ainda acontece que sou eu que tenho algo novo a dizer.
No caso do livro de Júlia Lopes de Almeida, a conversa começou em torno da ideia de que a autora teria dado spoiler no próprio título. Isso porque, nas primeiras páginas, a gente fica sabendo que o protagonista, Francisco Teodoro, é o próspero proprietário de um armazém de café no porto do Rio de Janeiro no final do século XIX.
Esse início todo dedicado a evidenciar seu orgulho com os negócios, que ele habilmente conduz, associado ao título, nos sugere que algo vai descarrilhar adiante.
Mas a questão central, no entanto, não está nisso. Era o que eu dizia para meu filho. Primeiro, porque tudo indica que a noção de falência pode ser compreendida de modo mais alargado, envolvendo uma dimensão metafórica que nos faz pensar acerca da transição de costumes e nas relações sociais que caracterizam aquele período.
Depois, porque esse é um livro do tipo que designo como “torradinha com patê”, em que o enredo serve principalmente para que haja ocasião de apresentar a riqueza da variedade de pessoas e relações.
Precisamos da torradinha porque não dá para comer patê puro; precisamos do enredo para conhecer os personagens, suas características, seu pensamento. O que vai acontecer com a história não é, portanto, o que mais importa nesse livro.
A identidade de quem escreve muda o olhar sobre o mundo descrito
Entre um acontecimento e outro, quase sempre de pouca importância, a narrativa abre bastante espaço para a descrição do cotidiano e, portanto, nos permite conhecer vários personagens e as relações que estabelecem entre si.
A história se passa pouco tempo depois da abolição da escravidão e há marcas profusas de racismo e das hierarquias sociais que organizavam as ações e o pensamento das pessoas que integram a história.
Mulheres
O aspecto mais interessante, na minha opinião, é o modo como a autora constrói as personagens femininas. São muitas as mulheres mencionadas e quase todas nos são apresentadas com densidade.
O leque social é bem variado: Camila, esposa do protagonista, é uma pessoa de origem modesta que se tornou uma mulher da elite; Ruth, uma das filhas do casal, é uma adolescente que não se interessa pelas regras sociais de seu meio e cuja atenção está dedicada à música.
Nina, é a sobrinha da família, agregada que trabalha na casa um pouco como governanta; Noca, é a empregada negra cuja sabedoria prática organiza o funcionamento da casa e faz a sutil mediação das relações no âmbito da família.
Eu poderia mencionar ainda outras várias mulheres descritas no livro, mas o que me parece valer a pena é observar que cada uma delas nos é apresentada como indivíduos distintos que pensam sobre o que se passa, que têm características específicas, defeitos, qualidades, enfim, que têm personalidade.
A experiência de vida do leitor também tem efeitos sobre a recepção da leitura
Parece pouco dizer que são mulheres que pensam e que diferem umas das outras por sua personalidade e não apenas por sua posição social. Mas, nesse caso, é bom lembrar que o livro foi escrito no fim do século XIX, quando era raro termos autoras mulheres, assim como igualmente raro que a descrição das personagens femininas fosse assim interessante.
A leitura desse livro reitera, para mim, a compreensão de que a identidade de quem escreve muda o olhar sobre o mundo descrito e/ou criado na literatura. Ou seja, a idade, o gênero e a identidade sociorracial dos autores têm efeitos no texto, de modo que quanto mais variados forem aqueles que escrevem, maior riqueza narrativa tendemos a encontrar entre os livros disponíveis.
Essa lógica também vale para pensar sobre quem lê. A experiência de vida do leitor também tem efeitos sobre a recepção da leitura. Essa é uma das razões que me encantam nas conversas sobre livros e leituras com pessoas diferentes de mim. Fico, portanto, esperando ansiosamente os próximos capítulos das conversas literárias com meus filhos.
Natália Gil é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do grupo de pesquisa “HISTEB - História da escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados”. Tem se dedicado a investigar a história da exclusão na escola brasileira e as implicações dos processos de quantificação em educação.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Ana Carolina Vasconcelos