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Na literatura, a memória em cena

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"Escritoras dessacralizam as relações familiares

Por Luciano Mendes

Como todos sabem, a nomeação das etapas da vida é construção histórica que guarda grande arbitrariedade. Ao longo da história este esforço classificatório foi muito rico em resultados, resultando numa pluralidade imensa de “idades da vida”. Ainda agora, elas variam, segundo a idiossincrasia pessoal e profissional do nomeador, de quatro a nove, e talvez mais, nunca se sabe.

Digo isso porque, segundo meu próprio umbigo, daqui a poucos meses estou entrando na 4ª idade, aquela que começa aos 60 anos de vida.

Sintoma, talvez, do envelhecimento, as obras literárias sobre a memória têm chamado a minha atenção. Andei escrevendo contos e romances sobre este tema e a ele tenho voltado em minhas leituras, sobretudo as mais recentes.

Termino de ler Memória de ninguém, de Helena Machado (Ed. Nós, 2022). Antes dele, li Essa coisa viva, de Maria Ester Maciel (Todavia, 224), que me chamou a atenção. E aqui, bem ao lado, Pedro Nava e Carlos Heitor Cony me aguardam!

Maria Esther Maciel, memória, "essa coisa viva"!

É lugar comum imaginarmos que a memória é coisa que pertence ao passado e que são nossas lembranças que nos configuram e nos dão identidade. Por isso, existem tantos rituais que nos fazem lembrar de onde viemos.

No entanto, há muito as ciências humanas sociais e, agora, outras áreas do conhecimento, estão a nos dizer que memória é trabalho no presente sobre o passado e inclui, necessariamente, também o esquecimento. Somos o que somos porque nos esquecemos, podemos dizer com segurança. No entanto, antes das ciências, todas as formas de artes foram sempre pródigas em nos ensinar sobre a memória, muitas vezes no ato mesmo de sua elaboração.

O novo livro de Maria Esther Maciel, professora, pesquisadora, literata e minha colega na UFMG, joga água nesse moinho.

Sob o título de "Essa coisa viva" (Todavia,2024), Maria Esther tece os fios de uma história em que Ana Luísa, a protagonista e narradora, conta toda uma vida de relações com a mãe. Numa relação marcada por sentimos ora ambíguos, ora contraditórios, e por abusos muitos, as figuras de mãe e filha que emergem dos relatos memorialísticos não são muito usuais, mas nem por isso pouco verossímeis.

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De assunto a assunto, de um detalhe ao outro, falando de baratas ou de porcos de estimação, e tendo como circunstância imediata a necessidade de isolamento durante a pandemia de covid-19, a narradora vai palavreando medos, pequenas felicidades, muito ressentimento e sua elaboração da relação com uma mãe ao mesmo tempo ausente e castradora.

As violências maternas são muitas para com a filha, mas não apenas com ela. Todas as pessoas à volta de Matilde sofrem com suas mães. A ação bondosa e benfazeja do pai, ainda que atenue o sofrimento, não é suficiente para evitar os abusos da mãe e seus impactos ao longo da vida de Ana Luísa.

Não é por acaso que o início do relato se dê justamente no aniversário de um ano da morte da mãe. Tempo de memória, o aniversário provoca desassossegos, deslocamentos e elaborações. Ana Luísa vasculha lembranças, guardados, fotografias, cartas e compõe um retrato nem um pouco confortável das relações mãe e filha. Mas, passar por isso, ela sabe, é condição para se libertar da servidão a um passado que teima em não passar.

Em "Essa coisa viva" Maria Esther Maciel trata das dores e das delícias de ser o que é. Fala do cotidiano e como ele nos habita. Diz da família e do que sobre ela se evita dizer. Enfim, nos permite reencontros com nossos medos, sonhos e alegrias pequenas, como o que há de melhor em nossa literatura.

Memória e vida

O livro de estreia da escritora carioca Helena Machado, na mesma trilha do livro de Maria Esther, trata da elaboração do luto, diante da morte do pai. Ou, se preferirmos, dos lutos vividos ao longo da vida pela narradora, uma mulher prestes a completar 40 anos. E trata também, talvez de maneira mais aguda, da relação com a mãe.

Numa narrativa ágil e criativa, com leveza e densidade precisas, o texto nos conduz pelos labirintos da cabeça (e de todo o corpo!) e da memória para a produção e apresentação de um longo adeus. É um adeus provocado pela morte imediata do pai, mas é também um longo adeus de uma vida em que se viveu (e se morreu) sob o signo de silêncios, de violências, dos remédios e da falta de perspectivas para se sair do círculo vicioso dos relacionamentos abusivos.

Palavrear o luto, elaborá-lo, transformar a morte em memória e tentar seguir em frente, exige, no livro, um acerto de contas com o passado. Acessá-lo é trabalho da memória. Como retirar o esquecimento, ou melhor, como trazer à luz experiências traumáticas que, pela obscuridade produzida pela vergonha e pelo medo, impedem o viver?

O morto é, pois, uma condição do diálogo entre os vivos, ou melhor, entre as vivas: a narradora, suas irmãs gêmeas e a mãe das três “meninas”.

A casa, o carro, as viagens, os papeis com os investimentos do pai, a relação com namorados... tudo vai, sob o liame da memória, sendo costurado numa enorme colcha de retalhos sobre a vida e a morte que fazem parte do viver. Saídas há, para o luto e para a vida, mas tomá-las exige escolhas cotidianas, que nunca fazem cessar a angústia dos vazios que atormentam os viventes. Aprender a conviver com eles, aprender a conviver consigo, é parte das histórias que são contadas no ótimo livro de Helena Machado.

Ambos os casos, num esforço esmerado e sensível, as escritoras dessacralizam as relações familiares e mostram que este é um universo que pode, também, ser fonte de muitos sofrimentos. Nestes tempos em que há um hiper investimento em uma visão idílica de família, tais obras nos ajudam a manter os pés mais firmes na realidade, ainda que seja por meio da ficção. 

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida