Entrevistamos Robson Sávio Reis Souza, professor, pesquisador, pós-doutor em direitos humanos, presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos de Minas Gerais e associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que falou sobre alguns dos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgados em julho.
O especialista comentou sobre a situação da violência em Minas Gerais e no Brasil. “São indicadores de criminalidade e de violência muito ruins de uma maneira geral”, avalia.
O relatório aponta uma queda no número de mortes violentas no Brasil, justamente no momento em que temos uma mudança no discurso presidencial, de um discurso mais bélico para um discurso mais pacifista. Esses fatos se relacionam de alguma forma?
Robson Sávio Reis Souza Estamos observando a redução de mortes violentas já tem algum tempo, então, não dá para atribuir, necessariamente, a mudança de governo. Mas é importante dizer que um governo que, por exemplo, não estimula políticas armamentistas, pelo contrário, trabalha na perspectiva de controle do armamento, que sinaliza para a sociedade e para as instituições policiais que pretende cumprir a lei, um governo que não trabalha com discurso belicoso, isso, faz com que muitas pessoas também comecem a perceber mais riscos em atividades e ações criminosas.
Então, a mudança de um governo não gera de imediato uma mudança nos indicadores, mas ela pode gerar uma mudança a médio prazo. Um ambiente que é menos perigoso, que é anti armamento, que sinaliza o cumprimento da lei, mostra para diversos atores da sociedade que é um custo maior praticar o crime. E isso pode resuldar em menos estímulos à prática do crime. E a gente deve ver isso nos próximos anos, inclusive.
E o que podemos falar desses indicadores para Minas Gerais?
Tanto os indicadores de Minas Gerais, quanto do Brasil, apesar de apresentarem quedas, não são índices para comemorar. Porque eles estão estabilizados ou com pequenas quedas, mas em patamares muito altos, se a gente compara com indicadores internacionais.
O conjunto dos dados sobre segurança pública são muito ruins
Nós não podemos naturalizar o fenômeno do crime e da violência a partir do pico dos crimes e comemorar quando há redução. Quando a gente pensa no Brasil, que tem mais de 45 mil mortes por ano, é preciso lembrar que não tem nenhuma guerra que mata tanto. E essa mortandade é de pobres, pretos, jovens e da periferia. Há um viés étnico-racial muito forte, os indicadores mostram o racismo.
Em determinados estados, 80% dos homicídios sequer têm um processo de investigação terminado. Existe uma seletividade muito grande do sistema de justiça criminal como um todo. O conjunto dos dados são muito ruins, só que, como nós já vivemos picos de criminalidade muito piores, parece, equivocadamente, que eles são bons.
É o que ocorre em Minas Gerais. O estado nunca foi um estado cujos indicadores de criminalidade foram muito mais altos que a média nacional. Eles sempre foram equiparados em relação à média nacional, e, às vezes, abaixo da média nacional. O problema é que a média nacional nos últimos 30, 40 anos tem sido muito ruim.
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No estado, você tem uma uma diminuição de indicadores de crimes violentos letais, mas você tem um aumento exponencial, por exemplo, de crimes praticados com viés de gênero, contra mulheres. Houve um aumento muito grande de estupros de vulneráveis. E um aumento de crimes relacionados à questão étnico racial. O que mostra que somos uma sociedade altamente violenta e que normaliza a violência.
Tem estados com 80% dos homicídios sem investigação concluída
Outra questão muito séria é o aumento da violência policial no Brasil. Você tem uma polícia que mata mais de seis mil pessoas por ano. Isso é um verdadeiro absurdo. Temos um aumento do suicídio de policiais, que é, hoje, uma quantidade maior do que as mortes de policiais em confrontos. E o Fórum Brasileiro chegou nesses indicadores por que Minas Gerais começou a disponibilizar os dados que estavam represados.
São indicadores de criminalidade e de violência muito ruins de uma maneira geral. É claro que tem estado em que os crimes violentos letais estão com taxas muito piores, mas os indicadores dos estados que estão melhor classificados, também não são bons se comparados com indicadores internacionais.
Você falou sobre a violência contra minorias sociais - que não são necessariamente minorias numéricas - como explicar esse aumento nos casos? E a gente pode falar que isso se deve também a uma maior conscientização sobre a necessidade de se denunciar tais violências?
Há um histórico de violência contra essas chamadas minorias, que são sociais e não numéricas. O histórico de violência contra mulher e a naturalização dessa violência vem desde os tempos do império. Violência contra crianças e adolescentes é a mesma coisa. Violência contra afrodescendentes, contra a população LGBTQIA+, a mesma coisa.
Há uma naturalização desse tipo de violência, uma conivência muito grande. E isso tem a ver com uma uma espécie de autorização tácita de toda a sociedade, que não se posiciona em relação a esse tipo de violência. Nós não vemos um debate profundo sobre o problema da violência contra mulher, criança, de gênero e em relação aos negros, por exemplo, nas escolas, nas universidades, nas igrejas, nos órgãos de classe da sociedade.
Raramente você tem uma reportagem jornalística que trata disso. No Brasil, por exemplo, matar pessoas pretas, pobres, da periferia, parece que não tem nenhum problema, tendo em vista a mortandade. Estuprar crianças e adolescentes vulneráveis também. É um discurso que ele não é conservador, ele é reacionário, e tenta blindar o lar para que o machismo, o patrimonialismo, o patriarcado impere nesses espaços sem consequências.
Pelos dados do Forúm Brasileiro de Segurança Pública, dá para perceber que se você somar entre parentes e vizinhos, 80% dos casos de estupros contra crianças vulneráveis, se dão no círculo de confiança, de amizade da criança. E isso na verdade não é motivo de um debate público, religioso, social. Então a gente tem que considerar esse histórico e isso se muda não somente com a educação formal. Para muda hábitos na sociedade é preciso pautar isso em todos os espaços: na família, nas escolas, nas igrejas, no ambiente de trabalho e com atitudes claras.
Histórico de violência contra a mulher, vem dos tempos do império
O problema é que em muitos desses ambientes, família, escola, igrejas, acabam ratificando essa impunidade em relação à violência relacionados a esses segmentos. E é por isso que não muda o sistema de justiça no Brasil. Ele é hiper seletivo, os promotores, juízes… É só a gente olhar lá no sistema prisional. Eles são super seletivos quando se trata, por exemplo, de crimes contra patrimônio ou crimes contra a vida. São, às vezes, mais efetivos em crimes contra o patrimônio do que contra a vida, se a vida for de um preto, pobre, da periferia, de uma mulher ou de uma menina.
É uma questão cultural muito mais ampla, que precisa ser enfrentada e ser mudada com um debate profundo. E, é claro, melhorar as políticas públicas, de proteção, de assistência às vítimas, de facilitação do acesso a Justiça. Mas é preciso melhorar o sistema de justiça criminal para ele ser mais efetivo, mais célere, isonômico. Tratar os crimes contra a vida, contra a pessoa, com prioridade e não os crimes contra o patrimônio. Encarar que o preto, a mulher e a criança tem a mesma cidadania de um homem branco de classe média. Se isso não for mudado, nós continuaremos cada ano comemorando indicadores com pequenas quedas como se fosse uma grande evolução da sociedade.
O governo de Minas Gerais anunciou a criação de um programa policial na Rede Minas, uma TV educativa. Esse tipo de programa pode alterar a percepção de violência da população? Como você enxerga o incentivo a esse tipo de conteúdo vindo do governo?
É lamentável você ter mais um programa que não é um programa policial, é um programa policialesco. Esses programas são incentivo à violência, ao ódio, uma celebração, uma glamourização da violência, principalmente da violência policial. E não colabora em nada com a sociedade, pelo contrário, incentiva uma ideia de que crime tem que combater com mais violência, com mais atuação policial, uma polícia agressiva, violenta.
Pouco se ouve a comunidade nesses programas, para inclusive tratar da relação delas com as polícias e com o estado. Esses programas não têm caráter educativo. Muito provavelmente faz parte de um lobby das corporações, que hoje tem muita precedência no governo do estado, para glamourizar o papel e a figura do policial. O que inclusive coloca as próprias polícias em risco, porque um policial que é tido como um herói, ele também corre muito risco sobre o ponto de vista operacional e profissional na sua atuação.
O programa atende esse público, que hoje quer uma polícia cada vez mais violenta, mais discricionária, mais sem controle. É muito lamentável que uma rede educativa se preste a isso. É a mesma Rede Minas que está sendo utilizada para criar um programa de viés totalmente religioso, o tal do programa da Dani, que é um charlatanismo religioso. É lamentável que uma emissora pública se preste a isso, a não trabalhar a questão da educação, inclusive a educação na área da segurança pública. Atendendo demandas muito pontuais e, às vezes até eleitoreiras, tendo em vista a forte presença da bancada policial com esse tipo de pauta em em outros espaços, como na Assembleia Legislativa de Minas Gerais.
Como especialista em segurança pública, como analisa o programa de incentivo à produtividade da Policia Militar de Minas Gerais (PMMG), que premia atividades como emissão de multas?
Esses programas de premiação de atividade policial, infelizmente, acontecem em várias polícias do Brasil e são muito perigosos se não forem monitorados, principalmente pelo Ministério Público e por outros órgãos de controle externo, como por exemplo o Tribunal de Contas do Estado. Porque eles podem na verdade incentivar a ação discricionária do agente público.
A minha hipótese é a seguinte: como o governo Zema não deu o aumento salarial que as corporações policiais queriam, ele tá fazendo uma série de concessões. A minha hipótese é que a proibição do fumo nos ambientes prisionais, a questão relacionada a essa produtividade de policiais militares e o programa policialesco na Rede Minas, entre outras, são uma série de concessões que o governo deve estar fazendo porque é pressionado pelas corporações e não deu aumento como elas queriam.
Então, o que acontece: principalmente a Secretaria de Justiça e Defesa Social tem tentado fazer um monte de ações para agradar policiais penais, policiais militares e policiais civis. E isso deve fazer parte de um pacote de agrados às corporações policiais, tendo em vista a frustração que os policiais tiveram pelo fato do Zema não ter dado aumento. E ele não deu aumento, não é porque ele não queria não, ele não deu aumento porque as contas públicas de Minas Gerais estão vergonhosamente gerenciadas no governo dele, vários números têm demonstrado isso.
Edição: Elis Almeida