Educação dos comportamentos sempre foi parte da tarefa escolar
Por Natália Gil (UFRGS)
Ideias complexas apresentadas em fórmulas fáceis sempre me inquietam. Tendem a circular com rapidez e escondem questões que precisam ser consideradas com cuidado e atenção. Esse é o caso da frase “a família educa e a escola ensina”, que pode parecer cheia de bom senso, mas traz, na verdade, as marcas do projeto de dominação cultural que inspirou a imposição mundial de um modelo de escola eurocêntrico.
A escola, na forma que conhecemos atualmente, foi inventada no século XVI na Europa e tinha por função incutir nos jovens valores e comportamentos cristãos. Aos poucos, cada vez mais, o ensino de conhecimentos como ler e escrever foi ganhando centralidade.
Por volta do século XVIII, a escola assumiu a tarefa de formar o cidadão nacional. Tornou-se, então, uma instituição vinculada ao governo dos países. Passou a se preocupar com a preparação de trabalhadores produtivos, que deveriam ter tanto conhecimentos específicos quanto moralidade considerada adequada às sociedades modernas.
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Ou seja, a escola nunca teve a atribuição de apenas ensinar os saberes curriculares. A educação dos comportamentos sempre foi parte importante nas tarefas a ela destinadas. E hoje não é diferente. A frase que sugere a separação entre ensinar e educar é, portanto, equivocada se analisamos o passado e o presente da escola.
Além disso, essa frase remete também a uma separação impossível de ser feita. No último século, avançamos muito, pelo acúmulo de conhecimento científico sobre educação, acerca da compreensão sobre como se dá o processo de ensino-aprendizagem.
Hoje não há mais nenhuma dúvida que, sempre que ensinamos algo, estamos, ao mesmo tempo, educando para valores e comportamentos. E, por outro lado, nenhum processo de educação deixa de ter o ensino de conhecimentos.
Mas não é apenas a ciência que nos informa a respeito de como acontece a educação de crianças. Há um ditado africano que diz que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. Isso nos lembra que a educação não se restringe ao que se passa no âmbito da família. Envolve necessariamente a comunidade toda; quem convive diretamente com as crianças, mas também as referências vindas de longe e que participam na compreensão que elas vão construindo acerca da sociedade em que estão.
Eu poderia multiplicar os exemplos, mas meu intuito aqui é apenas lembrar que essa setorização das tarefas, como se a educação das crianças fosse uma mera questão técnica, não corresponde à realidade.
Educar e ensinar são ações necessariamente articuladas
Se na escola são ensinados saberes específicos de matemática, por exemplo, isso não está desvinculado da necessidade de educar os estudantes para uma determinada postura e uma certa relação com o conhecimento matemático. A gente aprende a debater, a refletir sobre o que lemos e a organizar uma divisão de tarefas na escola.
A gente aprende a respeitar as diferenças e a conviver com pessoas de religião diferente da nossa na escola. A gente aprende a se posicionar no mundo, dar opinião (ou reprimir nossos pontos de vista) na escola. Isso é educar.
Por outro lado, se a família ensina que é preciso ouvir os mais velhos, isso vem junto com conhecimentos específicos sobre a cultura. Uma cultura que valoriza a experiência de vida e que produz uma educação em que esse respeito tem centralidade. No entanto, uma família vizinha pode ter outra vivência cultural e valorizar muito mais a impetuosidade da juventude e, assim, ensinar e educar para que as necessidades das crianças e adolescentes tenham prioridade no cotidiano.
Trata-se de uma ação educativa que só se efetiva na transmissão de conhecimentos culturais bem precisos. E esses podem ser muito diferentes, aliás, daqueles de outras famílias com as quais a criança convive.
Não estou contando nenhuma novidade, portanto, ao dizer que ninguém escapa de ouvir dos filhos, mais cedo ou mais tarde, o questionamento que vem expresso na frase “na casa de fulano eles fazem assim!” e dizer, em seguida, que “aqui não é a casa de fulano!”.
As diferenças existem e são legítimas. Os valores e as formas de interagir não são neutros em nenhum lugar e nos colocam diante do enorme desafio de construir formas respeitosas de viver junto. Daí, afinal, meu enorme incômodo quando ouço essa frase nas escolas. Porque ela é portadora de um desejo de imposição de determinados valores prescritos no contexto escolar e que se esperava que todos os alunos aprendessem em casa.
Quando se diz que a família é que deveria educar, por trás existem montanhas de preconceito sobre valores e modos de viver, especialmente, das crianças pobres. Há uma longa história sobre isso no nosso país, que não vou contar aqui, mas que permite entender quão discriminatória é essa aparentemente inofensiva frase.
Em lugar de alimentar esse desejo de que as crianças cheguem à escola, todas elas, hábeis praticantes de valores e condutas do grupo social que historicamente esteve em condição de estabelecer como devemos nos comportar, faríamos melhor em colocar no centro das práticas pedagógicas a negociação contínua dos saberes e dos comportamentos.
Assim como em dar maior atenção à busca de entendimento mútuo no dia a dia, alinhavada pelo compromisso necessário de respeito às diferenças.
Natália Gil é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do grupo de pesquisa “HISTEB - História da escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados”. Tem se dedicado a investigar a história da exclusão na escola brasileira e as implicações dos processos de quantificação em educação.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida