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Olé! As lendas na construção popular do futebol

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Foto: Romain Perrocheau - AFP
Marta foi quem escreveu os melhores versos dessa trajetória

Por Lucas Ribeiro

O Brasil chega à final olímpica do futebol feminino de forma apoteótica.

Do futebol, sim, Hermoso. Do futebol!

Jenni Hermoso, camisa 10 da equipe espanhola, esbanjou sinceridade ao dizer que as brasileiras “não jogam futebol”, após perder de 4 a 2 nas semifinais na última terça-feira. A pergunta que se instaurou nos debates desde a partida foi: mas o que é o futebol?

Ao meu ver, futebol é essa manifestação popular dinâmica, essa obra que transcende fronteiras e sincretiza afetos. Um exemplo?

Em 1970, durante a Copa do Mundo no México, a amarelinha encantava o mundo e Pelé se afirmava como o Rei. Seu drible em Mazurkiewicz, goleiro uruguaio, parece ter inspirado uma das maiores contribuições à gramática do futebol: o povo mexicano foi responsável por introduzir o “olé” no linguajar do esporte bretão.

Até chegar aí, o “olé” viajou muito, transcendendo culturas, tempos e espaços. O “olé” remonta ao “Alá” entoado por povos no norte da África, quando o sublime se apresentava em uma apresentação artística. Estar diante do belo era como estar na presença do divino.

Com as trocas entre mouros e latinos na península ibérica, “Alá” se transformou em “olé” e, como tal, foi apropriado nas touradas espanholas e no ápice do canto flamenco. As touradas, por sua vez, tornaram-se populares no México. Atualmente, o “olé” se encontra na boca de qualquer torcedor de futebol do mundo.

O que é o futebol senão essa construção de um patrimônio global? O uso de três letrinhas que tanto dizem e nos aproximam! Uma experiência que mobiliza milhões de afetos ao mesmo tempo.

Pronunciado na presença da beleza, o olé revela, assim, o que é percebido como belo num jogo de futebol. E o que seria belo no futebol?

Esse é um conflito em aberto, por mais que estejamos assistindo a hegemonia de uma forma de jogar. Isso porque, há algum tempo, na Espanha de Hermoso, a tradição estética é a da posse de bola. Essa manifestação regional, impulsionada por Guardiola, pouco a pouco se impôs em várias partes do mundo.

Contudo, essa não é a única possibilidade. Assim como fez recentemente a seleção argentina na Copa que coroou Messi como uma lenda, a seleção brasileira coloca em xeque a forma de jogar hegemônica.

O que a seleção brasileira fez foi abrir a porta de um futuro possível ao futebol sul-americano, cujos ídolos, mundialmente reconhecidos, foram os melhores artistas da experiência estética que mais mobiliza pessoas no mundo. O que parece se apresentar como possibilidade é a fusão entre a construção de lendas que sustentam a paixão pelo esporte e que renovam a tradição e a autoestima de um povo.

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Com tantas jogadoras da nossa jovem liga nacional e com um esquema de jogo próprio, a seleção nos permite sonhar com uma experiência mais real do futebol feminino em nosso país. Com a Copa do Mundo Feminina de 2027 se aproximando, no Brasil, a seleção veio reacender essa tradição de se emocionar com a amarelinha.

Por isso, a questão de Hermoso, frente a forma de jogar das brasileiras, é tão central, apesar de não ser precisa. Isso é o futebol? O espanhol, sem dúvida, não.

E é tão bonito!

Talvez a atleta não compreenda essa distinção. Tudo bem. Hoje não somos tão numerosas as pessoas que se emocionam com a seleção brasileira. Essa tradição, que depende do belo para se renovar, vem sendo machucada. Não é tão universal quanto já foi um dia.

Para os que ainda nos emocionamos, no entanto, o 4 a 2 foi bonito demais! Não só pela entrega e pelas grandes jogadas das brasileiras. Como dito por Juliana Cabral, medalhista olímpica com a seleção brasileira feminina em 2004 e atual comentarista, a beleza está também em ver um futuro possível ao projeto de futebol feminino, essa trajetória de luta tão árdua e que encanta tanta gente.

Sem dúvida, isso não nos garante o ouro. E, sábado, não seremos favoritas, como não éramos nas finais olímpicas de 2004 e 2008, quando perdemos. Por mais que tivéssemos Formiga, Cristiane, Marta e companhia, como poderíamos ser favoritas se nem tínhamos uma liga nacional?

Marta

Agora, sendo o ouro possível, o que se abre é a oportunidade de concretizar as utopias de um povo. O que está em aberto é a coroação de mais uma lenda do esporte mundial, que representa essa trajetória árdua, mas tão bonita, de conexão da torcida brasileira com o futebol feminino.

Quando se iniciou mais esse ciclo, na boca de tantos pode-se ouvir um desejo comum: coroar a trajetória de Marta com a medalha de ouro. Esse desejo que parecia pouco possível resiste e nos aponta um futuro possível: o reconhecimento que só os poetas podem ter. E Marta foi quem escreveu os melhores versos dessa trajetória.

A infelicidade de sua entrega total na primeira partida com a Espanha, traduzida num golpe atrapalhado de taekwondo, parece ter contaminado as brasileiras. Na semifinal, a seleção jogou sem a rainha, mas herdeira de sua garra e do seu engajamento com o futebol brasileiro e feminino. Sem Marta, mas herdeira de sua arte, a juventude e a resistência das brasileiras nos arrebatou.

Mesmo que não entre em campo, Marta já está representada. Seu maior legado, para nós, é ver esse futuro vivo! Seu maior legado é a beleza de poder se engajar com esse grupo de guerreiras em mais uma batalha.

E, se as deusas do futebol assim permitirem, o ouro feminino será muito mais do que a conquista em uma modalidade esportiva.

Por Lucas Ribeiro

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Edição: Elis Almeida