Meus olhos encheram-se de lágrimas e, mesmo tremendo e incrédula, argumentei
Por Marta Alves
Recentemente fui aprovada em quatro concursos de prefeituras municipais diferentes, todos em Minas Gerais, para a área de educação, Educação Infantil e Ensino Fundamental I. Sendo que, em Itabirito fiquei em 30° lugar em ampla concorrência, não concorri para PCD, me atrapalhei na hora da inscrição e não anexei o laudo. Contagem, 5ª colocação na ampla concorrência e 1ª para pessoas com deficiência (PCD). Em Ribeirão das Neves estou em 25° lugar em ampla concorrência e 1ª para pessoas com deficiência. Em Belo Horizonte, 61ª e, após a prova de títulos, fui para 72ª colocação. Destaco que fui para 72° lugar por não ter especialização na área da Educação, não por questão de desempenho nas provas.
Destes, já fui convocada para assumir cargo em três deles. Itabirito e Contagem, apesar de passar por todas as etapas do processo, incluindo testes psicotécnicos com acompanhamento e avaliação de psicólogos, não assumi o cargo porque ainda não estava com a “Declaração de Conclusão de Curso” da Faculdade Única que atestava minha graduação em Pedagogia. Portanto, em Contagem, pedi reclassificação para aguardar a conclusão do outro curso, em Pedagogia, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A Prefeitura de Ribeirão das Neves ainda não realizou nomeação para continuidade no processo de posse.
É importante ressaltar – isso fará mais sentido mais adiante no decorrer da história –, que eu possuo uma graduação em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda na PUC Minas; graduação em Pedagogia Licenciatura (modalidade EAD) na Faculdade Única; e estou no final do penúltimo semestre de Pedagogia Licenciatura na Faculdade de Educação (FaE) da UFMG. Além outras formações e experiências em Comunicação e Educação.
Continuando a narrativa, no dia 16 de julho de 2024, recebi a convocação da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH). Realizei todos os exames e recebi os laudos médicos de especialistas (otorrinolaringológicos, oftalmológico, psiquiátrico e laboratoriais). Passei pela perícia fonoaudiológica e, antes da escolha de vagas e da posse, só faltava a perícia médica com um médico clínico geral, agendada para o dia 1 de agosto de 2024. Eu deveria comparecer no dia e horário com os exames descritos no edital do concurso e com um formulário "Declaração para exame médico admissional" previamente preenchido. E assim o fiz.
Preenchendo esse formulário cheguei à seção com a seguinte pergunta: "Possui alguma deficiência? Se sim, especifique". Nas alternativas de resposta, as opções: "Sim; Não; Deficiência Mental/Intelectual; Auditiva; Visual; Física". Fiquei em dúvida de como responder, afinal, eu havia concorrido também a reserva de vagas para PCDs, mas eu sou pessoa dentro do Transtorno do Espectro Autista (TEA), nível de suporte I, que é uma condição de desenvolvimento neurológico, não é uma doença.
Não havia no formulário essa opção, nem a alternativa "outros" e se eu marcasse “NÃO”, estaria mentindo. Marquei a alternativa "Deficiência Mental/Intelectual" porque era a que se aproximava mais da minha condição. E na seção seguinte (“Faz ou fez algum tipo de tratamento? Especifique”), escrevi que tenho TEA nível de apoio I. Semestralmente faço uma consulta de rotina com psiquiatra e não tenho necessidade de fazer uso de medicação, de nenhuma natureza.
Perícia
Cheguei na perícia e fui atendida pelo médico Luiz Carlos Faria Júnior. Antes de ser chamada ao consultório, ele teve acesso aos meus exames e laudos. Ao entrar no consultório ele confirmou meus dados pessoais, cargo pretendido, classificação no concurso, e perguntou a mim, não conferiu ele mesmo com ferramentas e instrumentos próprios, meu peso, altura, idade, se eu tinha alguma doença, se tomava algum tipo de medicamento, se eu já trabalhava ou havia trabalhado na área de educação, qual minha formação.
Expliquei que tenho experiência em docência, não faço uso de medicações e que sou autista nível de apoio I. Então, ele pegou um anexo do edital e falou que sou INAPTA, para exercer o cargo de Professora da Educação Infantil e o motivo da minha reprovação é que sou deficiente mental/intelectual. Meus olhos encheram-se de lágrimas e, mesmo tremendo e ainda incrédula do que estava acontecendo, argumentei: “Como assim?! Eu me inscrevi no concurso com esse laudo psiquiátrico que atesta minha condição e informa que não tenho déficit cognitivo (6A02.0 – CID11), foi aceita minha inscrição para o cargo, depois disso eu realizei as provas objetiva e discursiva, inclusive foram as mesma dos “neurotípicos” (nos termos de vocês: os não doentes mentais/intelectuais), passei por duas bancas de avaliação psicossocial, com equipe multidisciplinar (composta por psicólogas, pedagogas e assistentes sociais) e fui considerada apta. Como aqui, nesta etapa eu sou eliminada?”.
Ele insistiu que eu era inapta. Eu argumentei mais uma vez: Eu tenho duas graduações, praticamente três, porque estou no final do penúltimo período da terceira, passei em quatro concursos de prefeituras diferentes, todas para o cargo de professora. Fiz, em clínicas diferentes, uma série de testes psicotécnicos e avaliação psicológica, fui aprovada em todos para a mesma função, sou a primeira colocada em todos os concursos para a reserva de vaga, com desempenho superior a centenas de pessoas, sem falar de outros concursos, por exemplo para mestrado, que fui aprovada. Como tudo isso, inclusive a avaliação de médicos especialistas e pedagogos, em 10 minutos de atendimento, pode ser desconsiderado aqui? Ele foi irredutível e me entregou o laudo de inaptidão.
Apesar de toda a emoção e argumentação, não fui mal educada, muito menos grosseira ou agressiva. Ainda tentando conter o choro, peguei o documento que ele me entregou e saí da clínica. Liguei para meu companheiro e falei o que tinha acontecido. Neste momento eu já estava chorando muito, – tanto que algumas pessoas na rua me perguntaram se eu estava bem e buscaram me confortar – e ele me buscou, para que eu não voltasse sozinha.
Só em casa percebi que o documento entregue a mim pelo médico só constava no parecer "Inapta", sem nenhuma menção ou explicação do porquê da decisão. Voltei à clínica e pedi ao médico que marcasse o motivo no laudo. Ele apenas me respondeu: - "Olha com elas lá [as recepcionistas da clínica]". E retirou-se da minha presença. As recepcionistas me falaram que eu teria acesso ao prontuário completo se fizesse a solicitação pelo portal da Prefeitura. Me deram um papel que, segundo elas, seriam os passos para essa solicitação, mas não era. Mais uma vez, chorando, voltei para casa.
Ao chegar em casa, Alexandre já havia procurado uma orientação jurídica e entramos com processo jurídico, pedindo uma revisão de tal decisão. Enviei e-mails para Prefeitura pedindo acesso ao prontuário completo, que contivesse claramente a decisão e o motivo pelo qual eu fui considerada inapta, pois, o médico havia apenas expressado verbalmente. Recebi orientação de amigos e colegas de qual seria maneira certa de solicitar o documento.
Ainda no mesmo dia, tinha aula da graduação na FaE UFMG. Sem muito ânimo, resolvi ir para aula. Normalmente, participo das aulas com perguntas, comentários, etc. Mas nesse dia, me mantive quase em silêncio, não estava em condições emocionais de contribuir. O professor Luciano Mendes, com sua sensibilidade e observação, notou que havia algo diferente em meu comportamento e ao final da primeira parte da aula, no intervalo, veio conversar comigo, perguntou se estava tudo bem. Respondi que não e expliquei tudo que tinha acontecido no decorrer do dia.
Imediatamente ele me orientou a procurar o sindicato e entrou em contato com a professora Mônica Rahme. Ela é professora pesquisadora e um dos seus objetos de estudo é o TEA. No dia seguinte, 2 de agosto de 2024, conversei com a professora Mônica e o “SindRede”. A PBH me deu o retorno enviando exatamente o mesmo documento que eu recebi presencialmente das mãos do médico. Cadastrei, via Portal PBH, um "recurso contra o laudo" e somente dia 9 de agosto, recebi o laudo completo. Que foi encaminhado para os advogados.
Desde o dia 1 de agosto, meus dias têm sido organizados em função deste acontecimento. Eu passo praticamente o dia todo, cumprindo com etapas dos processos administrativos, respondendo e enviando e-mails, buscando informações a respeito dos meus direitos (e os limites deles), recontando essa histórica em busca de orientações e enviando documentos que os advogados solicitam para incluir no processo. Isso significa que todos os outros compromissos e tarefas que tenho estão sendo adiados, prejudicados, cancelados. Me sinto triste, porque entendo como uma injustiça o que aconteceu.
E essa pressão, o "não", pelo motivo e da forma que aconteceu, foi muito inesperado. Eu tenho filhos, sou estudante, sou casada, fazia estágio (saí justamente para conseguir participar das etapas finais do concurso e terminar os trabalhos do final do semestre na faculdade) e tenho outras atividades pessoais e sociais que são impactadas por esse acontecimento.
Hoje, ainda estou aqui, escrevendo esse relato e sendo impelida a reviver tudo de novo. Isso sem falar em todos os custos financeiros que todo o processo – desde o início em outubro de 2023 – acarretou e agora ainda estou arcando com o processo judicial.
Marta Alves é graduada em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda – pela Pontifícia Universidade Católica – PUC Minas, graduanda em Pedagogia na Faculdade de Educação da UFMG, produtora audiovisual, membro da equipe do Programa de Rádio Serelepe – veiculado na Radio UFMG Educativa 104,5FM –, social media do Centro de Musicalização Integrada da UFMG e design gráfica.
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Leia outros artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG
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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida