Não faltam boas opções! Falta descolonizarmos nossos critérios acadêmicos
Por Natália Gil (UFRGS)
Precisamos urgentemente descolonizar a pesquisa no Brasil. Precisamos olhar para os temas de pesquisa e conceitos científicos a partir do sul do planeta, sob pena de não sermos capazes de dizer nada de efetivamente novo. Não podemos continuar restritos a aplicarmos, nos estudos feitos no hemisfério sul, ferramentas analíticas criadas em países do hemisfério norte.
O desafio é enorme. Reconheço que como comunidade científica temos dados alguns passos importantes nas últimas décadas, mas timidamente. Ainda seguimos, afinal, muito submetidos às pautas acadêmicas estabelecidas nos Estados Unidos e em países da Europa ocidental.
As razões que explicam nossa dificuldade em nos desprendermos dessas pautas já são conhecidas há algum tempo. Aníbal Quijano, um sociólogo peruano, nos ajuda a compreender que, mesmo depois do processo de independência dos países da América Latina, continuamos condicionados por lógicas e processos estabelecidos durante a colonização. Por isso, o esforço necessário neste momento é descolonizarmos nossos modos de pensar.
:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::
E esse é apenas um exemplo de autor que nos ajuda a analisar a questão. Há vários outros que também têm dedicado tempo e energia para a compreensão sobre o modo como os processos de dominação são internalizados por cada um de nós e acabam por cumprir um papel importante na organização das nossas percepções sobre os jogos de poder no mundo e sobre nós mesmos.
No que se refere à pesquisa acadêmica, em especial nas Ciências Humanas, é fundamental observar que nosso percurso é relativamente recente e que nossa prática de pesquisa foi instruída por intelectuais vindos de outros países.
Assim, por exemplo, é que se constituiu a Universidade de São Paulo (USP), hoje a mais potente universidade brasileira. Criada em 1934, a USP recebeu nos seus primeiros anos de funcionamento uma missão de professores estrangeiros, vindos sobretudo da França, com o intuito de instituir as bases da produção de pesquisa.
Por isso, ainda nos anos 1950, Florestan Fernandes, um importante sociólogo brasileiro que foi professor da USP, ressaltava o quão importante tinha sido a vinda desses professores, expressando que devemos a eles “mais do que lhes demos em troca, em compensações monetárias, honoríficas e morais”.
No entanto, essa posição de Florestan Fernandes, que talvez se justificasse nos anos de 1950, hoje não faz mais sentido. Apesar disso, ainda vigora entre muitos de nós a ideia de que apenas quem está em países como Estados Unidos, França ou Alemanha seja capaz de fazer pesquisa de qualidade. Daí que nos sentimos frequentemente obrigados a ler e citar algum autor europeu em nossos trabalhos. É como se isso certificasse que nossas pesquisas, brasileiras, são sérias e de verdade.
Geopolítica do conhecimento
A esse propósito, Raewyn Connell, uma socióloga australiana, observa o quanto as pesquisas feitas no hemisfério sul são dependentes da validação por critérios estabelecidos no norte.
Não é segredo entre pesquisadores brasileiros que somos mais valorizados quando publicamos artigos em revistas do norte, mesmo que isso não signifique que os pesquisadores desses países vão ler esses artigos e, talvez menos ainda, que nossos próprios colegas brasileiros vão nos ler em língua estrangeira. Connell nos lembra também que “intelectuais da periferia viajam para a metrópole para obter treinamento avançado”.
Nada parece, portanto, mais importante entre nós do que fazer um doutorado ou pós-doutorado na Inglaterra, em Portugal ou nos Estados Unidos, por exemplo.
Isso não significa, naturalmente, que tenhamos que parar de ler e citar autores do norte. O ponto é nos darmos conta que não são apenas eles que podem servir como referenciais teóricos das pesquisas que fazemos por aqui. É urgente assumirmos que autores como Paulo Freire, Milton Santos ou Marilena Chauí são tão aptos a darem sustentação teórica a nossos trabalhos quanto autores como Pierre Bourdieu, Michel Foucault ou Roger Chartier.
Mais importante ainda me parece ser pararmos com o entusiasmo fácil por qualquer pesquisador europeu, pelo simples fato de ser europeu. Ora, não basta ser um texto de autor espanhol, português ou francês para valer a pena dedicarmos nosso tempo a essa leitura. Vai parecer uma afirmação óbvia, mas é preciso que tal texto traga contribuições originais e pertinentes para as pesquisas daqui. De igual modo, seria interessante que déssemos mais atenção aos trabalhos feitos pelos nossos pares, especialmente no Brasil e nos demais países da América Latina.
Há pesquisas brasileiras excelentes cujos resultados circulam muito pouco. Ao passo que há textos rasos de autores europeus que ganham vida longa em terras tropicais e ocupam injustificadamente espaço privilegiado em nossas bibliografias de curso e de pesquisa.
Quer fazer o teste? Analise a lista de referências ao final dos artigos de autores acadêmicos brasileiros. Como a geopolítica do conhecimento se apresenta nessas listas? Quantos são os autores europeus citados? Agora, faça o mesmo teste em artigo de um autor, digamos, português ou espanhol. E aí, quantos autores brasileiros você encontrou?
Quer descolonizar a pesquisa? O movimento não precisa ser brusco. Comece trocando apenas um autor de referência europeu por outro do sul do planeta, bem ao estilo Bela Gil.
Não faltam boas opções! O que falta é descolonizarmos nossos critérios acadêmicos.
Natália Gil é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do grupo de pesquisa “HISTEB - História da escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados”. Tem se dedicado a investigar a história da exclusão na escola brasileira e as implicações dos processos de quantificação em educação.
--
Leia outros artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG
--
Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida