Maioria dos padres e pastores são fundamentalistas, espiritualizantes e moralistas
Uma questão central hoje na política, no Brasil e no mundo, é a questão religiosa. E não pode mais ser ignorada.
Se não encararmos de frente o perigo, há risco de a extrema direita retomar o controle do Poder Executivo federal, nos municípios e nos estados. E também abocanhar o Poder Legislativo nos três âmbitos.
Se a parte das igrejas que buscam ser libertadoras, os movimentos populares, os partidos de esquerda e as pessoas comprometidas com a cidadania não levarem a sério os desafios que a questão religiosa está nos impondo, estaremos acelerando as mudanças climáticas. Os eventos extremos serão cada vez mais frequentes e letais. A “queda do céu” na linguagem do xamã ianomâmi Davi Kopenawa, o fim da humanidade, será adiantado com muita velocidade.
O negacionismo e o egocentrismo da extrema direita darão as últimas punhaladas no planeta Terra, que já está na UTI. Onde foi parar pela ação do mercado idolatrado e do agronegócio, que mata indiscriminadamente de muitas formas.
Atualmente a maioria hegemônica dos mais de 26 mil padres e milhares de pastores (neo)pentecostais existentes no Brasil seguem o paradigma religioso fundamentalista, espiritualizante e moralista. O que na prática nega a encarnação de Deus na história, ignora a dimensão social do Evangelho e vira as costas para o ensinamento revolucionário e o compromisso de Jesus Cristo com as pessoas violentadas pelo sistema escravocrata do Império Romano, pelos saduceus (os ricos piedosos da época) e exploradas pelo legalismo do sinédrio.
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Por que e como se construiu este contexto religioso fundamentalista, espiritualista e moralista, que na prática nega os avanços promovidos pelo Concílio Vaticano II? Uma realidade que ridiculariza a opção pelos pobres batizada pelos bispos latino-americanos em Medelín, na Colômbia, em 1968, confirmada em Puebla, no México, em 1979, consagrada em Santo Domingos, em 1992, e referendada em Aparecida, em 2007.
Também no seio das igrejas evangélicas, mesmo as históricas, o Conselho Mundial de Igrejas, com sua orientação aberta e na direção da Paz, Justiça e cuidado com a criação, tem sido ignorado e combatido pelos setores mais espiritualistas das igrejas.
Estamos vivendo atualmente no Brasil, na América Latina, na África e no mundo capitalista ocidental as consequências brutais de dois projetos político-religiosos muito bem arquitetados.
Os demônios descem do norte
Um deles está muito bem descrito no livro Os Demônios descem do Norte, de Délcio Monteiro de Lima. Quando a Teologia da Libertação, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e as Pastorais Sociais estavam de fato sendo sementeiras de movimentos populares e contribuindo decisivamente na construção do Partido dos Trabalhadores (PT), fundado em 1980, da Central Única dos Trabalhadores (CUT), fundada em 1983, do sindicalismo combativo no meio do campesinato e nas fábricas nas grandes cidades, na criação do Movimento dos Trabalhados Rurais Sem Terra (MST), criado em 1984, lutando por direitos dos povos nas periferias das cidades e no campo brasileiro, os ideólogos do imperialismo dos Estados Unidos perceberam os riscos para seus interesses no continente.
Os ideólogos recomendaram a exportação da Renovação Carismática para o Brasil e a América Latina. Nos Estados Unidos, assim como na Europa, os movimentos de orientação pentecostal ou carismática faziam uma leitura espiritualista da fé, pouco ligada à vida cotidiana e aos desafios sociais e políticos. Ao ser exportado para o Brasil com apoio de muitos enriquecidos da elite econômica brasileira, se instalaram na igreja católica e nas igrejas evangélicas, e já ensaiavam o projeto “pequenas igrejas, grandes negócios”, com Davi Miranda, na Igreja Deus é Amor, Edir Macedo, na Igreja Universal do Reino de Deus, e uma espiral de igrejas pentecostais ou neopentecostais.
Este modelo fundamentalista, espiritualista e moralista de igreja está funcionando há mais de 40 anos e estilhaçando os esforços de lutas coletivas por direitos no Brasil e na América. Há teses de doutorado que demonstram o estrago que estas igrejas (neo)pentecostais têm feito no meio dos povos indígenas, quilombolas e em assentamentos de reforma agrária, por exemplo.
Ao primar pela relação eu-deus, “cada um por si”, individualização da bênção de Deus, o espírito e a mística que anima lutar em conjunto são desvalorizados. Assim, fazem o jogo que interessa aos capitalistas, pois quanto mais individualizadas e isoladas as pessoas, mais os capitalistas exploram a todos. Atrair o povo para o interno das igrejas e propor cultos várias vezes por semana é uma forma de impedir a participação do povo sofrido nas lutas coletivas por direitos. Muitos alegam “não posso ir participar de uma reunião, de uma assembleia ou de uma luta concreta por direitos, porque tenho que ir para o culto na minha igreja”.
João Paulo II e Bento XVI
Outro projeto político-religioso, do qual estamos sofrendo as consequências dramáticas, foram os 34 anos de pontificados de João Paulo II e Bento XVI, de 16 de outubro de 1978 a 28 de fevereiro de 2013. Estes, foram dois papas que incensaram e fomentaram aos quatro ventos os movimentos religiosos espiritualistas, moralistas, fundamentalistas, tais como Legionários de Cristo, Comunhão e Libertação e Renovação Carismática. O que desaguou na aparição de um grande número de “Novas Comunidades” com estilo medieval e institutos, bancados economicamente por empresários, que se dedicam a fazer apenas caridade aos empobrecidos.
Criaram as chamadas “TVs católicas”, como a TV Rede Vida e a TV Canção Nova, que tiveram apoio econômico do banqueiro José Eduardo Andrade Viera, dono do Banco Bamerindus, que chegou a ter mil agências no Brasil.
Papas conservadores nomeavam padres conservadores para serem bispos, que escolhiam padres conservadores para serem reitores de seminários, que acolhem jovens vocacionados que vêm de famílias integrantes de movimentos espiritualistas e fundamentalistas. Assim, em efeito dominó se disseminou o paradigma religioso fundamentalista, espiritualista e moralista na igreja católica. E de modo parecido nas igrejas (neo)pentecostais.
Nesta aliança não confessada entre o imperialismo dos EUA, os papas João Paulo II e Bento XVI e os grandes bispos das igrejas (neo)pentecostais, o povo chicoteado diariamente pela horripilante injustiça socioeconômica foi empurrado para os braços da extrema direita política, os fascistas. Isto pavimentou o caminho para a eleição de um presidente que “só sabia matar”, não tinha empatia pelo povo que sobrevivia asfixiado pelo capitalismo e pela pandemia da covid-19.
Os espertalhões da política profissional asquerosa sabem que a história demonstra que o fenômeno religioso existe e não pode ser ignorado, e se apropriam dele para realizar seus interesses. Como Mussolini e Hitler, que se diziam religiosos e apregoavam “Deus acima de tudo”. Os fascistas no Brasil abocanharam a dimensão religiosa das pessoas e colocaram na esquerda a pecha de ser “comunista” e “ateia”.
Lutar por direitos e pelo bem comum deixou de ser visto como algo ensinado por Jesus Cristo e que se encontra no coração de todas as grandes tradições espirituais da humanidade: a compaixão no budismo, a misericórdia no islamismo e o senso de justiça na espiritualidade afrodescendente.
A esquerda tradicional deixou de ser a referência primordial para o povo empobrecido, porque via de regra ignora a dimensão religiosa das pessoas, considerando “religião como ópio do povo”. E justifica a luta por direitos apenas com argumentos filosóficos e sociológicos das ciências humanas. Mas o povo simples se rege pelas pré-compreensões religiosas que definem grande parte das suas opções na vida.
Todas as ciências humanas são imprescindíveis, inclusive a teologia. Em uma sociedade religiosa não dá para ser analfabeto religioso. A Teologia da Libertação já demonstrou que quanto mais a pessoa está sufocada, desempregada, superexplorada, adoecida, quanto mais crucificada, humilhada, mais ela sente a necessidade de recorrer à dimensão espiritual.
É hora de superarmos o analfabetismo religioso
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica)
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida