Inês foi dialogando com os textos, marcando-os, escrevendo e indagando sobre os mesmos
Por Luciano Mendes
À Inês Teixeira, in memoriam.
Há, nos corredores da Faculdade de Educação da UFMG, onde trabalho, uma estante em que são depositados todos os tipos de impressos e, às vezes, de materiais audiovisuais para que quem passa por ali possa ver e, eventualmente, se interessar, levar consigo. Há, ali, de um tudo, desde livros de ensino de ciências e matemática da década de 1960 até exemplares de revistas ou livros que acabaram de sair do forno. Passando por ali, não foram poucas as vezes que depositei livros e revistas e, de outra parte, que recolhi algumas preciosidades.
Foi neste local, há alguns dias, que encontrei um precioso exemplar da revista Educação e Realidade, publicado em 1990, sobre Mulher e Educação cujas imagens acompanham este texto. Pela sua raridade, na forma impressa, e por sua importância na história da pesquisa em ciências humanas e sociais no país, ele chamou-me a atenção. Apesar de já possuir um exemplar da revista, eu o recolhi pensando em oferece-lo a uma pessoa em especial.
Este número da revista Educação e Realidade, como se pode ver acima ou conferir na internet, é um número histórico para o pensamento social brasileiro. Sua edição se confunde com a trajetória de pesquisa de nossas grandes referências no estudo da educação das mulheres e dos estudos de gênero no país, como Eliane Marta T. Lopes e Guacira Lopes Louro, as duas organizadoras do número.
Foi neste número que, pela primeira vez, circulou no Brasil, e em língua portuguesa, trazido da França por Eliane Marta, como ela me contou certa vez, e traduzido por Guacira Louro, o seminal texto de Joan Scott, Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Não cabe aqui fazer uma história da fortuna crítica deste texto nas ciências humanas e sociais brasileiras, mas ele é, certamente, um dos textos mais utilizados e citados nos estudos de gênero no Brasil desde então.
Professora Inês Teixeira
O volume tinha a capa deverasmente suja, parecendo que havia enfrentado uma guerra de poeira e água. Ao folheá-lo, não sem algum receio, confesso, notei que algumas folhas estavam grudadas. Mas, sobretudo, notei que o exemplar pertenceu à professora Inês Teixeira, uma colega há pouco falecida, que nele escreveu o nome e datou: “nov/90”. Pensei, logo, tratar-se, pois, de que as “coisas” dela estavam sendo descartadas por alguém, ali, para alguém ver e, eventualmente, pegar.
Eu fui colega da Inês Teixeira, na FaE, durante muitos anos, sendo, inclusive, seu Vice na Chefia do Departamento de Ciências Aplicadas à Educação. Nossa convivência nunca foi íntima, de frequentação em casas ou festas, mas foi sempre pautada por muito respeito e cordialidade. Nestas relações, pude aprender muito com ela.
Professora que foi de escolas de 1º e 2º graus – hoje educação básica – e do ensino superior, esteve sempre ligada à luta sindical e aos estudos sobre a condição docente. Nesta, um dos aspectos que sempre a encantou foi relativo a leituras e às memórias docentes, além do cinema, é claro, a respeito do qual ela não apenas estudou, mas também batalhou muito para que fizesse parte do “consumo cultural” das professoras.
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Então, eis que chega em minhas mãos o tal exemplar da revista que pertenceu a Inês Teixeira. E folhando-o, depois de separar cuidadosamente as páginas, pude perceber que ela não apenas leu os artigos, mas a alguns deles ela estudou detalhadamente. Além do texto da Joan Scott, ela se deteve, muito atentamente, nos textos da Helena Araújo – As mulheres professoras e o ensino estatal -, da Cybele de Almeida – A caixa de pandora: um olhar sobre os mitos e os medos na representação da mulher -, e da R. W. Connel – Como teorizar o patriarcado.
Ao longo da leitura – ao que parece, das sucessivas leituras – Inês foi dialogando com os textos, marcando-os, escrevendo e indagando sobre os mesmos. Que as marcas são dela, não há dúvida: a inconfundível letra está lá a demonstrar! Seria possível, num trabalho mais aprofundado, ir percorrendo estas marcas de leitura, o rebatimento das mesmas em suas aulas e em seus textos, e perceber como ela foi se apropriando daquilo que lia e das referências bibliográficas que os artigos trazem.
“As palavras têm uma história”. Esta é a primeira anotação que ela faz no alto do texto da Joan Scott. A gente poderia, a partir disso, dizer também que as leituras das palavras têm uma história. E esta história está marcada na leitura que a professora fez de um exemplar de revista como, certamente, fez de milhares de outros textos, livros, artigos, teses, dissertações e outros materiais ao longo de sua vida.
É doído, por isto, saber que a história das leituras e, portanto, da formação, bem como os lugares de memória em que estas se objetivam, como as revistas riscadas, de uma professora que ao longo de toda a sua vida lutou pelo direito à leitura e à memória por parte das professoras, não encontre lugar entre nossos lugares de memória.
Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)
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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida