Não podemos esperar que apenas judicializando os conflitos conquistaremos justiça
O Artigo 127 da Constituição Federal de 1988 diz que a missão do Ministério Público (MP) é defender os interesses sociais. Mas como o Ministério Público precisa atuar para, de fato e sem contradições, defender o interesse público?
Com esta pergunta na mente, participamos no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, dia 26 de agosto de 2024, do Encontro Nacional do Ministério Público sobre Apoio Comunitário, Combate à Fome e à Pobreza. Durante o encontro houve o lançamento do Grupo Nacional de Apoio Comunitário, Inclusão e Participação Sociais, Combate à Fome e à Pobreza (GNA-Social).
Participaram centenas de lideranças populares, promotores de Justiça, procuradores do MP, o ministro Wellington Dias, do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) do Governo Lula, um desembargador do Tribunal Regional Federal da 6ª região (TRF6), recentemente criado em Minas Gerais.
O encontro celebrou os 15 anos da Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Sociais (CIMOS) e tinha por objetivo oferecer subsídios teóricos e práticos para a ampliação e aprofundamento do trabalho da CIMOS, do Ministério Público do estado de Minas Gerais..
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Todas as comunidades não apenas atingidas, mas golpeadas, violentadas e brutalmente injustiçadas pelos grandes projetos do capital – mineração e agronegócio com as monoculturas -, reconhecem com gratidão o importante trabalho que o Ministério Público está fazendo por meio da CIMOS. Contribuindo na organização de muitas comunidades e viabilizando acesso ao sistema de Justiça.
A desorganização social é um grande empecilho na luta por direitos e pelo bem comum. Promover a união e a organização de base nas comunidades é imprescindível para o êxito das lutas populares por direitos. No Brasil, com população de 220 milhões de pessoas, há mais de 91 milhões de pessoas no Cadastro Único para Programas Sociais - CadÚnico.
Ancorando-se no Princípio da Fraternidade da Revolução Francesa, o desembargador Dr. Gregore Moura, do TRF6, teceu inúmeras críticas ao Poder Judiciário brasileiro e alertou que o direito, como está estruturado e sendo praticado, é para manter o status quo opressor, é a institucionalização da violência.
Não podemos esperar que judicializando os conflitos conquistaremos justiça. O Poder Judiciário está inchado com 80 milhões de processos em tramitação, sendo 39% dos processos de execuções fiscais. Este inchaço leva à lentidão das decisões judiciais e “decisão judicial lenta gera injustiça”. O Poder Judiciário no Brasil custa muito para o povo: em média cada pessoa paga R$437,47 por ano para sustentar o Judiciário. Esperar justiça do Judiciário é acreditar em ilusão.
É louvável a atuação de uma minoria de promotores e procuradores do Ministério Público, os que têm compromisso com a defesa dos direitos humanos, sociais e ambientais fundamentais.
Entretanto, não é justo o Ministério Público com braço de ferro denunciar e empurrar para detrás das grades uma massa de pessoas negras e periféricas. Por que não se segue a criminologia defendida por Eugenio Raúl Zaffaroni, jurista e magistrado argentino, que propõe imputar ao Estado parte da pena de um criminoso pelos direitos que foram negados a ele antes de ele cometer um crime, sendo que na maioria das vezes o jovem é empurrado para o crime pelas violações de direitos que sofre desde o ventre materno?
Cumprir a missão de “defender o interesse social”, missão do Ministério Público, é contraditório com promover o encarceramento de massa. São 800 mil encarcerados nas prisões brasileiras, modernos campos de concentração, onde se viola a dignidade humana e se tortura de muitas formas. Uma pesquisa de criminologia negra apontou que, salvo exceções, os presos são quase todos negros de periferia.
Quem espera justiça do Judiciário, pode esperar sentado
Neste contexto, é evidente que quem espera justiça via Judiciário pode esperar sentado para não se cansar.
As reflexões do encontro apontaram para a pertinência de se priorizar a conciliação em processo de negociação com auxílio de Assistências Técnicas ‘Independentes’. Entretanto, conciliar negociando, sim, mas como? Abrindo mão de direitos? Limitando direitos para pôr fim a demandas judiciais sem fim?
A experiência das comunidades submetidas a atroz violência está demonstrando que negociação sem processo de lutas populares concretas e cada vez mais massivas não levam a decisões justas. Ao contrário, tem levado à conquista apenas de migalhas e à amputação de direitos, como foi o caso do Acordão sobre o crime-desastre causado pela mineradora Vale no caso do rompimento da barragem em Córrego do Feijão em Brumadinho, MG. Acordão celebrado à portas fechadas entre a mineradora Vale S/A, o Governo de Minas Gerais, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, os Ministérios Público estadual e federal e Defensoria Pública de Minas, com aval da Assembleia Legislativa de Minas Gerais.
Diante das insistentes reclamações dos atingidos de que estavam excluídos do processo de negociação, a Defensoria Pública da União (DPU) se negou a assinar o Acordão. Postura ética e justa esta da DPU. Resultado do Acordão: as comunidades atingidas, melhor dizendo, golpeadas e violentadas pelo crime brutal da Vale S/A em Brumadinho ganharam poucos recursos, o governador Zema e dezenas de deputados da Assembleia Legislativa viabilizaram suas reeleições, pois distribuíram muito dinheiro para todos os prefeitos de Minas Gerais para fazerem obras eleitoreiras e com isso conquistarem reeleição também. E a mineradora Vale S/A agradou assim aos acionistas e poucos meses depois estava lucrando um valor várias vezes maior do que o que ela pagou no Acordão.
Pior! O governador Zema, com dinheiro sujo de sangue do crime da Vale, está impondo com uma série de ilegalidades o projeto de se construir um “rodoanel” na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), que será de fato um Rodominério, infraestrutura para a própria mineradora Vale continuar ampliando mineração em BH e RMBH. O que é insuportável socioambientalmente diante da emergência climática e da gravíssima crise hídrica.
Direito de desobedecer
Se o Poder Judiciário via de regra contribui para a reprodução das injustiças e violências, decisão judicial injusta deve ser cumprida? Aprendi em quatro anos do curso de Teologia e em quatro anos de mestrado em Exegese e Hermenêutica Bíblica que Jesus Cristo, mestre inspirador das pessoas cristãs, não respeitava leis e normas injustas. Curava no sábado, o que era proibido (Lc 14,1-6). Tocava em doentes e os curava (Lc 4,40), o que era proibido pela lei da pureza. Com os discípulos comeu em uma lavoura alheia para matar a fome em dia de sábado, o que era proibido pela Lei Judaica (Lc 6,1-5) etc..
É óbvio que para se conquistar direitos socioambientais em um país como o Brasil, o sétimo mais desigual do mundo, com um judiciário organizado para reproduzir as violências e as desigualdades e majoritariamente composto por homens brancos da classe dominante, desrespeitar decisões judiciais injustas se tornou um direito como caminho para se conquistar justiça.
O povo violentado não pode baixar a cabeça diante de decisões injustas, mas manter a cabeça erguida e seguir lutando coletivamente por direitos. Recorrendo no sistema judiciário até ao Supremo Tribunal Federal e, se necessário, às Cortes Internacionais e, em último caso resistir na luta até a vitória. Tomás de Aquino e outros filósofos nos ensinam que diante de tirania a resistência é justa e necessária.
Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica)
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida