Assumir a nota no PISA como evidência de qualidade na educação é uma simplificação enorme
Por Luciano Mendes e Natália Gil
O capitalismo nunca teve vocação para a distribuição de renda e, muito menos para a democracia. Quem tem agido ao longo da história para tornar o capitalismo menos desigual e autoritário, com mais ou menos sucesso a depender das épocas e dos países, têm sido o movimento sindical, os movimentos sociais e os partidos políticos de esquerda. Essa, no entanto, não é uma notícia que se veicula cotidianamente ao redor do mundo.
Um dos maiores investimentos da burguesia nos últimos séculos, incluindo neste em que estamos, tem sido vender a ideia de que a democracia e a distribuição de renda dependem da qualidade da escola. E essa é, infelizmente, uma expectativa duvidosa que tem sido aceita como verdade incontestável até mesmo pelos intelectuais e críticos alinhados mais à esquerda.
Como já argumentamos aqui, ao longo do século XX a explicação da burguesia brasileira e de seus áulicos na política e na universidade era que a concentração de renda e de poder das mãos de poucas pessoas no Brasil decorria de não termos uma escola para todos. Essa explicação era falaciosa pelo simples fato de que ao longo do século XX a escola se expandiu e, ao contrário do esperado, a concentração de renda e de poder político só aumentou.
Mais ainda, conquistada a escola para quase todas as pessoas, o argumento se deslocou: não bastaria ter escola para todos como garantia de distribuição de renda e democracia, seria preciso que essa escola fosse de qualidade. O que significa uma escola de qualidade, no entanto, é algo longe do consenso e poucos têm se dado ao trabalho de especificar objetivamente. E, nesse contexto, não é por acaso que, nas últimas décadas, tenha havido uma pressão cada vez maior para que aceitemos que uma boa escola é aquela gerida pela e para a iniciativa privada.
Não podemos esquecer que a melhor distribuição de renda em alguns países centrais do capitalismo, muito mais do que relacionado com a escola, está em relação direta com as pilhagens que tais países fizeram ao longo dos séculos - e continuam a fazer - das riquezas dos países e das populações pobres ao redor do mundo.
PISA e extrema direita
Nas últimas semanas passeamos a buscar evidências do quão duvidosa era aquela outra ideia: a que diz que uma “boa escola” teria, como um de seus resultados, a garantia de democracia, expressa na qualidade do voto dos sujeitos educados por essas escolas.
A imprensa burguesa no Brasil assim como a intelectualidade engajada nas benesses oferecidas pelas empresas e fundações que atuam no campo da educação são unânimes em apontar a posição do Brasil no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) como sendo um retrato da falta de qualidade da nossa escola. Apesar de todas as críticas, entra ano saí ano é sempre a mesma ladainha.
Assumir a nota no PISA como evidência de qualidade na educação é uma simplificação enorme, como já mencionamos aqui em outra ocasião. No entanto, podemos por um momento fazer o exercício comparativo entre países usando essa régua simples.
Então, partimos para a análise de quais têm sido as escolhas políticas das pessoas que frequentaram as tais “boas escolas” dos países melhor colocados no PISA de 2023.
Sem surpresa alguma, verificamos que vários países, sejam eles europeus ou não, que estão à frente do Brasil no PISA, são ou foram governados pela extrema direita – ou seja, por governos cujos representantes não apenas não são adeptos da democracia, como são abertamente contrários à boa parte daquilo que estabelecemos como direitos humanos.
Em outro tanto de países, também à frente do Brasil no PISA, a extrema direita cresce a olhos vistos e ameaça tomar o poder.
Hungria, Países Baixos, Itália, Finlândia, Chéquia, Croácia, Portugal, França, EUA.... e quase todos os países do mundo em que a extrema direita governou, governa ou avança estão à frente do Brasil no PISA. Isso deveria nos fazer pensar mais sobre o assunto.
Onde será que chegaremos em nosso esforço de perseguir o PISA e esvaziar a escola de tudo aquilo que mais importa às pessoas que a ela buscam? Infelizmente não parece ser mais democracia, direitos humanos, igualdade e solidariedade.
Um dos resultados da crença (porque, sim, trata-se de uma crença) no poder da escola em formar as pessoas para a boa escolha política, aquela que nos afastaria dos bárbaros e selvagens e nos levaria para os braços da civilização, é que passamos a naturalizar o fato de que a burguesia, seus intelectuais e divulgadores que atuam na supervalorização da escola como formadora política, atuam também para destruir as formas de organização camadas populares e trabalhadoras. Uma das estratégias tem sido, não por acaso, a destruição das práticas e dos espaços educativos desses grupos.
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Está mais do que na hora de aceitarmos que assim como Hitler não foi um ponto fora da curva na “Europa Civilizada”, escolarizada e humanista – basta ver os inúmeros genocídios ocasionados por povos europeus ao redor do mundo nos últimos séculos -, Bolsonaro e seus seguidores não defendem o que defendem e praticam o que praticam por falta de escola, civilidade e humanidade. Boa parte da extrema direita, dos arautos do neoliberalismo, das elites racistas, entre outros grupos antidemocráticos, coleciona diplomas e é muitíssima escolarizada.
Não é por acaso que empresários, como alguns dos que participam de falcatruas como a das Americanas, que não titubeiam em apoiar a extrema direita no Brasil (pelo menos até o ponto em que esse apoio lhes granjeia lucros), que apoiam as reformas que precarizam o Estado e a qualidade de vida das classes trabalhadoras, mantêm um enorme séquito de ativistas e intelectuais que divulgam em todo o tempo e lugar seu apoio à causa da “boa educação” brasileira.
Acreditar que vamos ter mais democracia, direitos humanos, distribuição de renda a partir de uma “melhor escola” supostamente capaz de salvar, pelo empreendedorismo, pelas ciências, pela matemática e pela leitura, as populações pobres, indígenas e quilombolas, arrastando-as para a civilidade e a “boa” vida burguesa, é acreditar num conto de fadas ou de carochinha.
Sem-terra, sem trabalho, sem renda, sem tempo, sem festa, sem artes, sem saúde, sem reconhecimento, sem alegrias, é impossível ter qualidade de vida, democracia e direitos humanos.
Aliás, essa é a verdadeira educação – a da terra, do trabalho, da festa, das artes, da alegria, da organização coletiva, do reconhecimento... – que incomoda, sempre incomodou, o capital.
É ela que forma as pessoas para, inclusive, interagir com a escola de maneira mais autônoma, crítica, criativa e a duvidar dos processos de classificação das pessoas e dos países como aqueles representados pelo PISA, por exemplo.
É por isso que na equação qualidade da escola = qualidade da política, o que falta é justamente a educação!
Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)
Natália Gil é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do grupo de pesquisa “HISTEB - História da escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados”. Tem se dedicado a investigar a história da exclusão na escola brasileira e as implicações dos processos de quantificação em educação.
Ambos são editores da Coluna Cidade das Letras
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Leia outros artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida