Em nossa sociedade muito injusta, pobres sofrem muito e todo dia
Por Natalia Gil
Volto a falar de algo que já mencionei antes nesta coluna. Trata-se da riqueza intelectual inscrita na possibilidade de termos, atualmente, autores com identidades variadas. Isso vale para pensar a escrita científica tanto quanto a literatura ou o jornalismo.
Hoje, o que me traz aqui é o que ecoa em mim como resultado da leitura recente do livro de crônicas de José Falero, "Mas em que mundo tu vive?" (Todavia, 2021). Falero é um reconhecido autor que se autodefine como marginal-periférico de Porto Alegre e que integra poesia e crítica social bem amarradas num excelente uso das palavras. Leitura que flui e ao mesmo tempo impacta.
O texto é fácil de ler, o autor nos conduz de uma palavra a outra sem que a gente se dê conta do tanto que já leu; por outro lado, a reflexão é forte e, por isso, não foram poucas as vezes em que tive que parar de ler para respirar e pôr de novo em ordem minhas emoções.
A perspectiva a partir da qual ele vê o mundo só se torna minimamente acessível para mim porque ele se propôs a partilhar essa experiência pela escrita. Esse mundo que teoricamente é o mesmo em que eu vivo, mas que se apresenta muito mais duro para ele. Em que mundo mesmo vive cada um de nós? Que a gente perca logo essa ilusão de que a gente vive no mesmo mundo só porque vive na mesma cidade. Se você ainda tem esse tipo de ilusão, a escrita de Falero vai te ajudar muito a rever a sua posição.
Mas não é preciso viver em Porto Alegre para ser impactado por sua escrita. Viver em uma sociedade cuja desigualdade social é tão abissal como no caso do Brasil amplia a possibilidade de que a gente se identifique com as histórias que ele conta, mesmo morando em outros cantos.
Há quem se identifique por viver situações semelhantes e há quem se identifique mais pelo avesso da história, como no meu caso. Um efeito estranho de nunca ter estado nas situações que ele descreve, mas reconhecer vários elementos da cena toda. Uma identificação pálida (porque vivo na parte protegida desse mundo injusto) resulta em um gosto amargo para mim.
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E sublinha algo que, para mim, já é uma convicção antiga. Numa sociedade racista e socialmente muito injusta, quem é atingido diretamente pelo racismo e/ou pela pobreza sofre muito e todo dia. Mas se engana quem pensa que não temos nenhuma implicação. A desumanização de quem está ao meu lado, necessariamente me desumaniza também. E todo dia é preciso um esforço, seja para lidar com a culpa, seja para sustentar o autoengano e convencer a si mesmo de não ter nada a ver com isso.
Moro perto de um supermercado ao qual vou sempre a pé. Fico pensando que quem anda só de carro pela cidade segue mais fácil por essa via do autoengano. Assim, pode se iludir que as imagens da cidade real sejam meras cenas de um filme triste. A pessoa sentada na calçada que pede que para quem passa trazer leite ou um pacote de bolacha do supermercado pode parecer ficção, mas não é. E essa cena desumaniza todos nós, mesmo quando usamos os artifícios possíveis para evitar olhar.
O texto de Falero nos traz todo o tempo de volta à cena e faz pensar na perspectiva de quem vive na iminência de ir parar naquele lugar. Eu nunca tinha pensado por esse ângulo. E é preciso muito delírio meritocrático depois dessa leitura para seguir acreditando na explicação delirante de que as pessoas sentadas na calçada do supermercado estão ali porque querem, porque têm preguiça de trabalhar. Nunca fui dada a esses delírios, mas me faltava a descrição pungente a partir desse ângulo que não é e não poderia ser o meu.
Tem ainda a poesia, e não é pouca!
Para além do tanto de riqueza em termos de crítica social que o texto de Falero aporta, tem ainda a poesia, que não é pouca!
Eu que escrevo (sem grande poesia afinal) sei que o trabalho com as palavras é difícil. Aprendizado longo e lento até chegar a colocar as frases em sequência de um modo interessante. E fiquei aqui pensando nesse autor incrível que, ao invés de trabalhar apenas com as palavras a vida toda, trabalhou também na reposição de produtos na prateleira do supermercado e outras ocupações dessas consideradas "pouco qualificadas" nessa nossa sociedade meritocrática.
Me lembrei também de quando soube que Lupicínio Rodrigues foi porteiro na universidade em que hoje sou professora. Lá num tempo em que uma pessoa negra não tinha muita chance de entrar nos prédios da UFRGS como estudante ou professor(a). Ainda que, atualmente, eu tenha alguns estudantes e colegas negros nessa mesma universidade, estamos longe de uma proporção minimamente representativa da presença dessas pessoas na sociedade.
Ou seja, ainda temos mais pessoas negras nas atividades de limpeza e zeladoria do que nas salas de aula e laboratórios de pesquisa.
Nesse ponto, preciso sublinhar que a questão não passa pelo menosprezo das atividades que não são predominantemente intelectuais. Menos ainda menosprezo pelas pessoas que realizam essas atividades. A questão passa por dois outros pontos. O primeiro deles é o fato muito objetivo de que a remuneração para alguns trabalhos é muito, mas muito mesmo, inferior do que a de outros. E isso por si só é muito injusto.
Esse primeiro ponto está ligado ao segundo, que é a hierarquização racial e a crença meritocrática liberal organizadora das nossas relações interpessoais. É isso que faz com que quem vem do meu meio social aprenda desde pequeno a acreditar que uma pessoa que trabalha na reposição de produtos no supermercado seria intelectualmente nula e que o médico seria intelectualmente brilhante. Enquanto que pode sempre ser exatamente o inverso. Não fosse nosso preconceito, estaríamos sensíveis à profusão de exemplos em contrário evidentes no cotidiano da vida.
Como pesquisadora, nos últimos anos tenho escrito textos acadêmicos sobre essas questões. E foi, então, uma alegria me encontrar com a escrita de Falero cuja crítica se aproxima da que eu faço. Mas ele faz por um ângulo impossível para mim e com muito mais poesia!
Natália Gil é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do grupo de pesquisa “História da escolarização no Brasil: políticas e discursos especializados (HISTEB)”. Tem se dedicado a investigar a história da exclusão na escola brasileira e as implicações dos processos de quantificação em educação.
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida