Anualmente, o Setembro Amarelo é dedicado a uma ampla campanha de combate ao suicídio e de promoção da saúde mental. Durante todo o mês, a atuação dos serviços públicos de atenção à saúde mental ganham destaque. Ao mesmo tempo, especialistas denunciam que, no Brasil, uma parte da rede de assistência foi cooptada por entidades privadas.
O Brasil de Fato MG entrevistou Isabella Lima, doutora em psicologia e conselheira do Conselho Regional de Psicologia (CRP) de Minas Gerais, que explicou como funciona o atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), a situação da rede em Minas Gerais e as contradições do modelo implementado pelas comunidades terapêuticas.
Leia a entrevista completa:
Brasil de Fato MG - Como foi e quais têm sido os desafios da mudança do modelo hospitalocêntrico para o modelo aberto de base comunitária? Ainda existem manicômios no Brasil?
Isabella Lima - Durante muito tempo, o que o Estado brasileiro ofereceu, em termos de política pública de saúde mental, foram os hospitais psiquiátricos, os manicômios. O manicômio de Barbacena, por exemplo, foi chamado por Franco Basaglia de "campo de concentração".
Não é possível conceber a manutenção de instituições como os manicômios
O caso de Damião Ximenes Lopes é interessante de ser lembrado. Ele foi internado em uma instituição e morreu em 1999, em decorrência de agressões. O Brasil foi condenado pelas agressões e maus-tratos, além dos prejuízos gerados à sua família, e pela omissão na investigação do crime.
Embora estejamos em transição para um modelo de atenção psicossocial, com a ampliação dos serviços abertos e baseados no cuidado comunitário, ainda existem hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas (CTs) que seguem reproduzindo a lógica manicomial e violadora de direitos humanos. Não é possível conceber, em um contexto democrático, a manutenção de instituições como os manicômios.
Embora ainda não tenhamos chegado ao cenário ideal, a mudança de modelo de atenção à saúde mental foi acertada?
A transição do modelo hospitalocêntrico para o de atenção psicossocial, organizado de forma territorializada, foi uma mudança muito significativa. Sem dúvida, esse é o caminho possível, se queremos propor a convivência com as diferenças e a garantia de direitos.
A proposta de cuidado em liberdade busca promover uma visão mais respeitosa
A recusa do modelo manicomial e asilar, excludente e violador de direitos humanos e a afirmação do cuidado em liberdade são passos importantes. A proposta de cuidado em liberdade busca promover uma visão mais respeitosa das pessoas com sofrimento mental, considerando a sua dignidade, que, por muito tempo, foi negada.
A Lei Federal 10.216, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, traz a perspectiva de cidadania e trabalha para potencializar a autonomia das pessoas, reduzindo o estigma ao sofrimento mental, que, tradicionalmente, é associado à periculosidade e à incapacidade.
A eficácia de qualquer política pública depende de recursos, capacitação e valorização dos trabalhadores
O cuidado em liberdade nos permite perceber que a convivência com essas pessoas não só é possível, como também é uma das estratégias de promoção da saúde. Precisamos fortalecer as redes de atenção psicossocial (RAPS) e o cuidado na atenção básica.
Para isso, é fundamental ter investimento financeiro dos governos federal, estadual e municipal. A eficácia de qualquer política pública depende de recursos, capacitação e valorização dos trabalhadores.
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Qual é a situação desses investimentos em Minas Gerais?
Minas Gerais, por ser um estado com grande extensão territorial e variações socioeconômicas significativas entre as suas regiões, além de configurações culturais distintas, enfrenta desafios específicos na implementação das políticas públicas de saúde mental.
Há uma fragilidade significativa na oferta de cuidados em saúde mental na atenção básica ou na atenção primária. A alta rotatividade de recursos humanos é um dos fatores que contribuem para isso. Os trabalhadores são mal remunerados e, muitas vezes, preferem atuar em outras políticas ou contextos, causando fragilidade nos serviços de saúde mental.
Há uma quantidade insuficiente de leitos em hospitais gerais e uma carência de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) para crianças e adolescentes, o que compromete a assistência a esse público. Também há uma insuficiência de CAPS Álcool e Drogas (CAPS AD), que são fundamentais para o cuidado de pessoas com uso abusivo de substâncias.
Com essa falta de investimento para a ampliação dos CAPS AD e dos CAPS Infanto Juvenis, observa-se a proliferação das comunidades terapêuticas. Essas instituições, porém, nem sempre oferecem o cuidado adequado e, muitas vezes, operam de maneira contrária às diretrizes das políticas públicas de saúde mental.
As CTs são, na verdade, instituições asilares e manicomiais que funcionam basicamente a partir do tripé: trabalho, abstinência e religião.
Você pode explicar um pouco mais sobre esse tripé?
A estruturação das comunidades terapêuticas em torno do tripé abstinência, trabalho e religiosidade contrasta fortemente com as políticas públicas de saúde mental mais inclusivas e baseadas em direitos, como a redução de danos.
A ênfase dessas instituições na abstinência total como única resposta à questão das drogas, por exemplo, reflete uma visão proibicionista e moralizante, que acaba resultando em inúmeras violações de direitos, com práticas abusivas, violentas e coercitivas, como a desintoxicação forçada, o uso excessivo de contenção física ou química e o isolamento.
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Por outro lado, a estratégia de redução de danos reconhece que a abstinência total pode não ser uma meta realista ou desejável para todas as pessoas. Essa abordagem compreende o uso de drogas como uma realidade complexa e propõe um cuidado mais acolhedor e realista.
A desconsideração de critérios científicos e de cuidados humanizados no tratamento de crises de abstinência, substituindo-os por práticas como orações ou intervenções religiosas, expõe essas pessoas a um ambiente que ignora suas necessidades de saúde e impõe uma visão moral.
A ênfase na disciplina rígida, com a imposição de normas comportamentais e religiosas, transforma essas instituições em espaços de controle social, ao invés de acolhimento e cuidado.
A maior parte das CTs enfatiza a conversão religiosa ou espiritual como um componente central do processo de "cura" ou "recuperação".
Muitas dessas instituições defendem que o trabalho faz parte do tratamento. Na prática, como isso acontece?
As comunidades terapêuticas usualmente obrigam as pessoas internadas a participarem de atividades laborais. Existe um discurso de que o trabalho é uma forma de disciplina e de promover responsabilidade.
No entanto, o que constatamos, ao acessar relatórios de inspeção e fiscalização, é que as pessoas internadas se tornam responsáveis pela manutenção integral do local. Isso inclui a limpeza dos espaços, a produção das refeições, entre outras tarefas. Muitas dessas instituições sequer têm funcionários específicos para realizar essas atividades.
Já encontramos situações em que pessoas internadas atuavam como cuidadoras de outras pessoas, incluindo idosos, pessoas com deficiência e pessoas que fazem uso de drogas.
Além disso, muitas vezes essas pessoas estão nas instituições de forma involuntária, em locais de difícil acesso, sem poder sair. Não há a opção de recusar as atividades laborais e, em muitos casos, a recusa é automaticamente vinculada à possibilidade de punição.
Não é incomum encontrarmos uma relação clara com a prática de trabalho em condição análoga à escravidão.
Edição: Ana Carolina Vasconcelos