Minas Gerais

Coluna

Família em primeiro lugar é política. E pode ser nefasta!

Imagem de perfil do Colunistaesd
Charge - Laerte
Não é democraticamente conveniente que deixemos de nomear de fascistas os familiares que o são

Por Luciano Mendes 

Dizem que o “Bolsa Família é para vagabundo”, que “bandido bom é bandido morto” e que os “direitos humanos são para os humanos direitos”, mas, como são da família, faço ouvidos moucos. 

Falam que gays são uma aberração, que casamento homoafetivo é contra as “leis de Deus” e que as mulheres pobres deveriam ser castradas, mas, como são meus irmãos, aceito jantar com eles. 

Dizem que negros são avaliados à arroba, que os índios são preguiçosos e que os quilombos e as terras indígenas deveriam ser tomados pelo agronegócio, mas, como já nos acostumamos com essas “brincadeiras”, deixamos pra lá. 

Defendem que a ideologia de gênero vai transformar os meninos em “veados” e as meninas em “sapatonas”, mas, como somos muito unidos, resolvemos celebrar mais um aniversário com eles. 

Eles dizem que Jesus veio trazer a espada e não a paz, que Israel é um Estado cristão e que os mulçumanos são a encarnação do mal, mas, em nome da união da família e a pedido do papai e da mamãe, ou em honra deles, aceitamos compartilhar a mesa do Natal. 

Quando fazem campanha para os fascistas e votam em quem afirma que vai nos exterminar, em quem promete nos varrer do mapa, aí já é demais e a gente combina que não vai mais conversar sobre política no grupo de WhatsApp da família. Nesta convivialidade sepulcral, reina a paz de cemitério e jaz a democracia.

Ninguém sai ileso de uma ditadura

Em texto recente, que escrevi para a Revista Brasileira de Educação Básica, eu dizia que me impressiona o quanto pessoas engajadas, muitas delas de esquerda e de formação universitária, que cresceram durante a Ditadura Civil-Militar que aterrorizou o país, torturou e matou milhares de pessoas, dizem que isso não fez parte da infância delas. 

Já que elas e seus familiares diretos não sofreram violência física, é como se, lá no interior do Brasil ou no íntimo da família, a ditadura não tenha existido. O argumento do artigo vai, justamente, na contramão disso, ao afirmar que pessoa alguma saiu ilesa da ditadura.

Esquecimento e entorpecimento

O mesmo esquecimento ou entorpecimento parece ocorrer, hoje, com muitas pessoas do bem (e não “de bem”) que, em nome da paz familiar, aceitam as atrocidades políticas e simbólicas praticadas por familiares fascistas. 

Sabemos que boa parte das instituições públicas construídas na modernidade o foram, justamente, para se contrapor ao poder familiar. Do Estado Moderno, passando pela obrigatoriedade da educação escolar, às leis de proteção às mulheres e às crianças, tudo foi feito contra o poder tirânico do pater famílias

A ideia é a de que o poder público deveria regular tais relações e proteger as partes mais fracas contra o arbítrio do pátrio poder. A este respeito, me lembrei de um texto antigo – de 1977 –, do Eduardo Viveiros de Castro e de Ricardo Benzaquem de Araújo, “Romeu e Julieta e a origem do Estado Moderno”, no qual eles defendem a tese de que, subjacente à tragédia shakespeariana, está a origem do Estado Moderno pela submissão das famílias dos jovens mortos à autoridade do Príncipe.

Estado e família

No campo da educação escolar, uma das faces mais visíveis deste fenômeno é, sem dúvida, a obrigatoriedade escolar, invenção do século XIX que se expandiu para quase todo mundo. Por meio dela, estabeleceu-se pela primeira vez na história humana, pelo menos na história que conhecemos, que o pátrio poder poderia ser submetido à autoridade do Estado e que, portanto, independentemente da vontade do pai (ou, se preferirem, da família), a criança deve ser matriculada na escola. 

Cultural e politicamente o que se estabelece aí é que a família não é suficiente ou, em alguns casos, capaz de bem educar as novas gerações para o mundo da política e para o mundo do trabalho.

Não é, pois, por acaso que todas as ideologias e as políticas fascistas se baseiam na ideia de que  é necessário um retorno à tradição, à família e, junto com ela, claro, à propriedade e à igreja, para que o mundo supostamente volte aos seus trilhos. 

Família! Família! Família! Gritam os algozes das famílias que não são as suas próprias e idealizadas famílias. É em nome da família que eles defendem que a escola não pode contrariar o que a família deles entende por bom, belo, justo, certo e verdadeiro. 

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::

Em uma escola para a qual afluem crianças advindas de milhões de famílias, dos mais diversos modelos familiares, qual é mesmo “a família” que não pode ser contrariada? A idealizada por eles, claro, já que suas próprias famílias, na maioria das vezes, não entrariam no figurino traçado por sua própria ideologia.

Família não pode estar acima de tudo

Família é uma experiência política, cultural, econômica e social importante para quase todos os seres humanos. É por isso também que a família, em seus diversificados modelos, goza da proteção do Estado. 

Daí, nossa dificuldade em explicitar que a família não pode estar, afinal, acima de tudo. No entanto,  não é salutar, nem democraticamente conveniente, que, em nome da convivência familiar, a gente deixe de nomear de fascistas os familiares que fascistas são. 

Sabemos que a família, como experiência vivida, e não como ideal ou como doutrina,  pode ser nefasta e arrasadora para muitas pessoas e, coletivamente, para a democracia.

Ao romper com ideais antigos baseados nos laços de sangue, ou seja, laços familiares tradicionais, a modernidade institui a possibilidade da democracia moderna, ainda que esta, como experiência histórica, jamais tenha se realizado plenamente. 

Portanto, assim como não será pelo recolhimento à nossa intimidade do lar ou da casa, será muito menos pela valorização idílica de uma família que nunca existiu que construiremos a democracia e fortaleceremos relações mais justas, solidárias, igualitárias e não violentas entre as pessoas.

“Paz sem voz, não é paz, é medo”, já diziam os poetas. Do mesmo modo, relações familiares, nos mais diversos modelos familiares possíveis e historicamente existentes,  sem política, sem bem-estar e sem o pressuposto da democracia não são relações amorosas e construtivas de pessoas felizes. 

São, ao contrário, relações de subserviência, de tristeza e de poder discricionário. Muitas vezes, como já se disse, os nossos inimigos mais asquerosos moram ao lado. A gente não deveria se esquecer disso quando o assunto é, também, as relações familiares e a democracia.

 

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

--

Leia outros artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG

---

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Ana Carolina Vasconcelos