Apesar da tensão e do medo, Guiomar Marotti Dumont teve coragem de falar. Ela é uma das vítimas de Nova Lima (MG) desabrigadas após o aumento do nível de risco da barragem B3/B4, e que agora podem, juntas, ter que reembolsar milhões de reais à Vale. O grupo está sendo processado por estelionato e associação criminosa pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) pelo uso de recursos para custear alimentação, lavanderia e hospedagem durante a realocação.
Em 16 de fevereiro de 2019, Dumont e cerca de outras 300 pessoas foram retiradas de suas residências devido à possibilidade de rompimento da barragem, construída da mesma maneira da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), cujo colapso deixou 272 mortos três semanas antes. Quando a sirene tocou, ela e sua família, inclusive seu neto de apenas 37 dias de vida, estavam na casa dela, no distrito de São Sebastião das Águas Claras, mais conhecido como Macacos. Naquele momento, eles pensaram que mais uma barragem havia se rompido e a morte estaria perto.
Guiomar Dumont viveu em um hotel por quatro meses e cerca de dois anos em uma pousada, pagos pela Vale. Não foram dias de férias. “Tudo que eu queria era ir embora. Eu não queria nada da Vale, eu não queria nada. Eu queria ir embora para um lugar seguro”, disse. Com os donos fora, a Vale era a responsável por cuidar dos imóveis desocupados, que foram invadidos ou roubados, o que postergou ainda mais a volta para casa.
Após ter recebido uma indenização da empresa, a ex-moradora de Macacos saiu da pousada. Com o dinheiro, comprou um apartamento em Lagoa Santa (MG). “Um lugar que me traz calma e que não tem barragem”, descreve. Diz não pisar mais no antigo bairro: “Quando eu ia pra lá, a pressão subia”.
Em maio deste ano, a advogada virou ré em uma ação penal que a acusa de um “esquema de rachadinha” no qual a vítima seria a Vale. São 37 denunciados, incluindo quatro donos e um funcionário de pousadas. A ação, elaborada pelo MPMG, mira os repasses feitos por pousadeiros a hóspedes quanto a valores pagos pela mineradora.
“O golpe consistiu na seguinte prática: o valor destinado, pela Vale, para arcar com as despesas de hospedagem, alimentação completa e serviços complementares (lavanderia etc.), era rateado em partes desiguais entre o hospedeiro e o hóspede beneficiário sem que os serviços fossem efetivamente prestados”, disse a denúncia, apresentada em 14 de outubro do ano passado.
O que o MP viu como “golpe”
Após ter retirado as pessoas de suas casas, a Vale foi obrigada por decisão liminar da 2ª Vara Cível da Comarca de Nova Lima, no âmbito de uma ação civil pública movida pelo MPMG e pela Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG), a arcar com os custos de “abrigamento e manutenção dos desabrigados em hoteis, pousadas, imóveis locados” e “total custeio da alimentação, medicamentos, transporte, adequação dos locais às características de cada família, sempre em condições observando-se a dignidade ẹ equivalentes ao status quo anterior à desocupação”. Também foram feitos quatro acordos que definiram os direitos dos atingidos e ações de reparação.
Com o prolongamento das estadias, no entanto, a mineradora estabeleceu algumas regras que não estavam previstas. Por exemplo, a Vale determinou que a alimentação e lavanderia dos atingidos deveria ser providenciada pelas próprias pousadas e hotéis onde estavam hospedados. Na prática, isso significava que as pessoas teriam de comer nos horários determinados pelos estabelecimentos, além de não terem ingerência sobre o cardápio oferecido pelos pousadeiros, que não contemplaria os gostos e necessidades nutricionais específicas de cada um. De acordo com os atingidos, alguns locais também não tinham estrutura para fornecer alimentação e lavanderia, nem mesmo para hospedar as pessoas por tanto tempo. Os pousadeiros então começaram a repassar parte do dinheiro pago pela Vale aos hóspedes, ação que vem sendo questionada judicialmente.
O acordo era para que os atingidos pudessem decidir o que comer e como lavar suas roupas. Em alguns casos, os combinados envolveram aluguéis de casas, para evitar anos restritos a apenas um quarto de pousada. São esses repasses que a denúncia do MPMG e a Vale caracterizam como “esquema de rachadinha” e crime de estelionato – definido como enganar alguém para obter vantagem ilícita – cometido em associação criminosa. De acordo com a denúncia, a situação “trouxe para os donos das pousadas um enriquecimento sem causa”.
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“Esse é o tipo de modus operandi das empresas quando elas tentam criminalizar as pessoas”, avalia a professora Maria Fernanda Repolês, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela faz parte do Programa Polos de Cidadania, um programa de extensão da universidade, que publicou um relatório sobre a ação penal, que descreve a situação vivida pelos atingidos nas pousadas em março de 2021 como “insustentável”. “Mesmo com todos os esforços eivados pelos proprietários e funcionários das pousadas, [as pessoas] não conseguiam ter um mínimo de conforto, mantendo-se ‘acampadas’ em situação bastante precária.”
Em 23 de maio deste ano, a juíza Luiza Starling de Carvalho, da 2ª Vara Criminal e de Execuções Penais da Comarca de Nova Lima, avaliou que a denúncia apresentava “suporte probatório capaz de evidenciar a justa causa para instauração da ação penal” e iniciou o processo, que segue em andamento.
Ainda que o autor da denúncia seja o MPMG, o processo só seguiu porque a Vale afirmou sua “vontade em ver todos os acusados processados e responsabilizados pelos prejuízos causados”, como escreveu a juíza ao iniciar a ação. Em processos por estelionato, é necessária a concordância da possível vítima.
“Isso para mim é muito mais ofensivo do que tudo que eu vivi. Me chamar de estelionatária, me chamar de bandida, isso para mim é mais forte do que tudo que eu vivi lá dentro [da pousada]. Não tem sentido, não tem lógica”, afirmou a advogada. “Da Vale eu espero tudo e não espero nada, né? Agora, de um Ministério Público… Eu estou até tremendo. Quando eu falo disso, eu tremo mesmo, porque eu fico muito indignada. A gente não pode confiar na nossa Justiça”, acrescentou.
A Agência Pública questionou a Vale acerca do valor total do prejuízo supostamente sofrido e sobre como a empresa responde à avaliação de especialistas de que o processo seria uma forma de criminalizar e desarticular os atingidos, entre outros questionamentos. Em resposta, a mineradora disse que “o inquérito policial que ensejou a ação penal pelo Ministério Público de Minas Gerais contra hóspedes e pousadeiros de São Sebastião das Águas Claras foi instaurado por requisição do próprio órgão ministerial após o recebimento de uma denúncia anônima. A Vale atendeu as previsões legais e as requisições de informações das autoridades com vistas a colaborar com as apurações”.
Também indagado sobre o motivo da denúncia e sobre a possível criminalização das vítimas, o MPMG afirmou que “os elementos pertinentes à atuação do Ministério Público de Minas Gerais no caso podem ser consultados nos autos do processo, que é público, e pode ser solicitado junto ao TJMG [Tribunal de Justiça de Minas Gerais]”.
“Ninguém ficou milionário”
“As pessoas estão numa situação em que elas foram levadas ao limite. […] A polícia chamar as pessoas é uma forma de intimidação também. A pessoa já está cansada, [então] ela para de protestar e ela vai ficando cansada mesmo, desestruturada. A gente vê muitos indícios de como em Macacos isso operou de uma maneira muito forte, adoecendo essas pessoas”, avalia a professora Maria Fernanda Repolês.
O relatório da UFMG aponta ainda possíveis “incongruências e a falta de transparência dos dados” usados no inquérito policial que baseou a denúncia no MP. A equipe de pesquisa refez os cálculos acerca de quanto cada pessoa teria, supostamente, auferido com o esquema, e a discrepância entre o valor apontado pela Vale e o resultado calculado a partir dos dados no processo ultrapassou, em um dos casos, R$ 400 mil. Entre as inconsistências há também o fato de uma das quatro pessoas apontadas como proprietárias contestou a ação por ser dona de pousada diferente da citada no processo.
De acordo com Repolês, o processo judicial e a criação de “um clima de pressão e de fragilização das pessoas” seriam estratégias de bullying corporativo e a ação penal representaria uma tentativa da Vale de receber de volta o dinheiro que gastou na compensação dos danos gerados aos atingidos. “Eles estão tentando receber pela via penal o que eles gastaram pela via cível, sendo que na via cível eles são os culpados, eles que criaram uma situação pela qual têm que compensar as pessoas”, afirmou.
Ainda de acordo com o relatório do Polos de Cidadania, o contato com a mineradora era difícil. Ao longo de 2019, a empresa manteve um ponto de apoio no centro de Macacos para ouvir os atingidos e suas demandas, mas o local foi fechado após o início da pandemia de covid-19 e substituído por uma linha telefônica.
“Eles começaram a parar o atendimento, a parar de dar apoio, que já não davam, que era muito pouco”, explicou Guiomar Dumont. Ela afirmou que recebia do pousadeiro os repasses de alimentação e lavanderia para custear esses serviços, já que os serviços não seriam oferecidos no local. Disse que usava o dinheiro para “sobreviver do seu jeito”. “Ninguém ficou milionário. Ninguém ganhou na loteria. Eu não sei… Me parece que eles estão falando em valores altíssimos. […] Para mim não veio”, afirmou.
A filha dela, Débora, junto com o marido, Gabriel, e o filho, Caetano, então com 6 meses, haviam sido alocados pela Vale em uma pousada onde contavam com quarto, banheiro e varanda. Quando começou a pandemia, no início de 2020, o dono da pousada ofereceu à família trocar o cômodo por uma casa nos fundos do terreno da propriedade. A advogada conta que, naquele ano, voltaram a celebrar o Natal. A família fez o primeiro aniversário de Caetano. O casal também se tornou réu na ação.
Jogo de cartas marcadas (e desmobilização)
Para as advogadas Nana Oliveira e Isabela Corby, da Assessoria Popular Maria Felipa, que representam nove atingidos, e para a professora da UFMG Maria Fernanda Repolês, as regras impostas pela Vale representavam uma forma de controlar a vida das pessoas. Repolês destacou, por exemplo, um documento chamado “Regras gerais de hotelaria para hóspedes”, que teria sido distribuído pela empresa em 30 de março de 2022, quando a investigação que culminaria na ação penal já estava em curso.
De acordo com o relatório do programa de extensão, essa foi a primeira vez que a empresa estabeleceu a proibição do “recebimento de transferência, em dinheiro, a título de prestação de serviços”, alvo do processo. O documento definia também, por exemplo, que tipo de sobremesas as pessoas poderiam comer – “uma (01) fruta ou um (01) sorvete ou um (01) petit gateau ou um (01) açaí ou um (01) pudim ou um (01) bombom” – e afirmava que, se as pessoas se ausentassem por mais de 15 dias sem justificar o motivo à Vale, seus pertences ficariam armazenados por no mínimo 30 dias e, no máximo, 90.
A professora considera as regras impostas “extremamente autoritárias”. “A Vale não tem o poder de determinar que horário que a pessoa vai comer, que horário que a criança vai brincar… Inclusive, se a pessoa podia ou não sair, quantos dias ela podia sair do hotel. Por exemplo, se a pessoa saía de férias, ela não podia viajar se não comunicasse à Vale, se a Vale não autorizasse a pessoa a viajar”, explicou Repolês.
“Na cabeça da Vale, a pousada não era a casa das pessoas”, concordou Nana Oliveira. As regras vieram logo após os atingidos terem enviado uma notificação extrajudicial à empresa solicitando melhores condições de hospedagem, em fevereiro de 2022. A mineradora não respondeu. O processo também aponta que nunca foram feitos contratos entre a companhia e os pousadeiros, em razão da “celeridade que aquele momento exigia”, de acordo com a Vale, ainda que as pessoas tenham passado anos nas pousadas.
Para a advogada Isabela Corby, o processo é parte de “uma estratégia de intimidação”. Ela conta que, após a denúncia por associação criminosa, as pessoas, que por vezes se uniam para protestar contra a Vale, teriam parado de conversar entre si, já que isso poderia ser usado como prova da existência de uma suposta associação. “Elas têm medo de que isso as coloque mais em risco”, explicou. “Essas nove que nós estamos assistindo são pessoas que não ficaram caladas. Todas essas pessoas criticaram o modo de reparação”, finalizou Corby.
Lama invisível
Ainda que a B3/B4 não tenha colapsado, a lama invisível, expressão que define a incerteza sobre o possível rompimento de uma barragem, chegou a Nova Lima e a vários outros municípios mineiros. Nos últimos anos, não só os moradores de Macacos tiveram de sair de suas casas em função da mineração, como também os de Antônio Pereira, distrito de Ouro Preto, e Barão de Cocais. Neste ano, as comunidades de Barão de Cocais completaram cinco anos deslocadas por causa de uma barragem da Vale. Mais de 400 pessoas foram forçadas a sair de suas casas entre 2019 e 2020 no município do sul de Minas
Atualmente, existem 56 barragens de minério com alto risco de rompimento no Brasil, das quais 25 estão em Minas Gerais, o estado brasileiro com o maior número de barragens: 336 das 934. Do total, apenas 467 estão enquadradas na Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), criada pela Lei nº 12.334/10, que avalia risco e registra a evolução dos casos.
A barragem que motivou a retirada das pessoas em Macacos foi descaracterizada pela Vale em maio deste ano. De acordo com a mineradora, todo o rejeito foi retirado da estrutura. “Com isso, não existem mais riscos à população e ao meio ambiente associados a essa estrutura”, diz a empresa em um vídeo de divulgação. De acordo com a mineradora, ainda há 16 descaracterizações de barragens do tipo a serem entregues pela companhia nos próximos anos.
A descaracterização foi uma obrigação definida pela Lei Estadual 23.291, apelidada de “Mar de Lama Nunca Mais”. O projeto havia sido proposto em 2016, após o rompimento de Fundão, em Mariana, mas só virou lei um mês depois do desastre em Brumadinho.
Edição: Ed Wanderley