Minas Gerais

ARTIGO

Assédio no samba: a gente nunca acha que aquele dia será o nosso dia

Me deixaram por horas sentada frente a frente com o agressor, que ria, brincava com os seguranças e me chamava de louca

Belo Horizonte (MG) | Brasil de Fato MG |
AGÊNCIA BRASÍLIA - PAULO H. CARVALHO

Eu comecei e recomecei a escrever este texto mil vezes, porque é difícil falar do lugar de vítima sem deixar que outros tomem protagonismo sobre a minha história, ou sem assumir o papel passivo que geralmente se espera de uma vítima. 

No domingo (6), fui a um famoso samba de Belo Horizonte para comemorar o encerramento da campanha eleitoral de um amigo. Eu já vinha evitando o estabelecimento há algum tempo, justamente pelas denúncias constantes de assédio, racismo e outras violências que se espalhavam pelas redes sociais sobre aquele lugar. Mas a gente nunca acha que aquele dia será o nosso dia. Mas foi. 

Cheguei quase ao fim do primeiro show, e já no intervalo a DJ residente da casa falou ao microfone que uma garrafa havia sido arremessada em sua direção. A noite seguiu, o segundo show começou e em determinado momento, enquanto eu retocava meu gloss, um homem passou por trás de mim, me pedindo licença e deslizou a mão por todo o meu corpo, dos ombros até a coxa, antes de andar e parar poucos metros à frente. 

Na hora, demorei alguns segundos para entender o que havia acontecido. Uma amiga, parada pouco a frente, me olhou assustada e repetia “ele passou a mão em você toda, eu vi. Eu vi certo? Ele passou a mão em você inteira”. Um homem, num domingo qualquer, se sentiu no direito de passar a mão no meu corpo como quem passa a mão num objeto qualquer, sem escolha e sem vontade. E essa foi a primeira violência da noite, que deu espaço a todas as outras. 

Imediatamente, procurei o dono da casa, que acionou a segurança e chamou a pessoa que em tese seria a mais adequada para me atender. Essa mulher saiu, com os seguranças e meus amigos, atrás do agressor. Eu só voltei a vê-la quando eu fui, acompanhada por outros amigos, procurar os que haviam saído primeiro por medo de que se envolvessem em algum tipo de briga. Ela me viu e disse que estava me procurando. Eu havia ficado parada exatamente no lugar onde ela me deixou. 

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::

Essa mulher solicitou que eu a acompanhasse sozinha até a cozinha do local, onde me disse que a minha palavra valia muito, mas como o agressor havia dado uma versão diferente, a casa não poderia expulsá-lo e chamaria a polícia. Não sei se ela esperava que ele falasse “sim, eu passei a mão nela inteira” quando questionado. Não me foi dada a opção de escolher o que fazer em momento algum. Inclusive foi me dito que o agressor queria chamar a polícia porque ele era a vítima. Enquanto isso, a Ana gritava do lado de fora que ela havia visto tudo e ninguém a ouvia. Ninguém ouviu. 

O que se seguiu foi uma série de violências. Fizeram um cordão de isolamento em volta do cara, enquanto quem estava comigo eram os meus amigos, se dependesse da casa, eu ficaria sozinha. O dono da casa saiu e deixou essa mulher e o filho, menor de idade, para controlar a situação. Em determinado momento, o agressor se sentiu à vontade para provocar minha amiga. Ele foi protegido, ela foi empurrada. E a partir daí as hostilidades escalonavam. A sensação era de que a equipe de segurança esperava um mínimo motivo para nos agredir fisicamente e nos expulsar. 

A minha amiga que foi empurrada, revoltada com o tratamento que me era dado enquanto os seguranças riam e conversavam com o agressor, passou a filmar a situação. Em resposta, um dos seguranças pegou o celular pessoal e começou a filmar meu rosto afirmando que se minha amiga iria filmar o agressor, ele também me filmaria. Tudo isso ao lado da pessoa que deveria acolher mulheres em caso de assédio. Eu tirei fotos do segurança debochando, mas nas fotos poderia ter quase toda a equipe de segurança da casa. 

Me deixaram por horas sentada frente a frente com o agressor, que ria, brincava com os seguranças e me chamava de louca, dizia que iria registrar um boletim de ocorrência porque a vítima era ele. Não houve, em momento algum, a menor intenção de me proteger ou me preservar do que acontecia ali. Em determinado momento, o dono do estabelecimento voltou e ao me ver ali, se ofereceu para me levar à delegacia já que a polícia ainda não havia chegado. A pessoa responsável pelo acolhimento me disse que eu não sairia, porque ela, a equipe dela e o agressor estavam ali até agora “por minha causa”. Ao fundo, o agressor repetia que eu havia criado todo aquele tumulto, que não iria embora.

Algum tempo depois, quando duas viaturas passaram pelo local sem parar, ligaram novamente para a polícia, que informou que não havia previsão. O agressor resolveu que faria o B.O. online, então a responsável conversou comigo para que eu também fizesse. E para me dar os dados do agressor, passou os meus para ele. Sim, a casa passou meus dados para o assediador. Aceitei, para que eu pudesse tomar as atitudes cabíveis. Já eram quase duas horas da manhã, eu estava cansada, humilhada, com enxaqueca, não havia comido nada desde que saí de casa. Eu só queria um lugar onde eu me sentisse segura e esse lugar não era ali. 

Entre segunda e terça tomei todas as atitudes possíveis nos campos legais e políticos, para que outras pessoas não passem o que eu passei e os responsáveis arquem com suas atitudes. Acionei veículos da imprensa, me posicionei nas redes sociais e fiz o possível para que minha voz ecoasse. E não só ecoou como encontrou outras vozes que também relataram violências sofridas naquele lugar.

Espero que a minha coragem seja a porta para que essas outras vítimas se manifestem não só nas redes, mas nas esferas legais possíveis. A defensoria pública está pronta para receber, orientar e acolher outras vítimas.

Agora que relatei o que aconteceu, te convido a uma conversa mais pessoal

Eu fui vítima de uma violência que ecoou em diversas outras violências, mas não quero o lugar de vítima passiva de uma situação. Eu sou a protagonista da minha história e se eu não tenho controle do que os outros fazem, tenho controle das minhas reações. E a minha reação é falar, gritar e lutar por justiça. Deixar as coisas passarem seria muito mais fácil e menos trabalhoso. Eu estou cansada, machucada e sofrendo de uma forma que não consigo descrever. E estou com raiva. Mas essa raiva é o meu combustível para correr atrás de justiça, uma justiça que eu não deveria pedir. Meu corpo não é público, o de nenhuma mulher é. Eu tenho direito de ir ao samba e ao fim do mundo sem ser tocada, sem ser desrespeitada. Eu existo e tenho o direito de existir onde eu quiser. 

A primeira pergunta que eu mais recebo é se estou bem e a resposta é não, não estou.  Depois, vem o comentário sobre ser forte. Espero muito que um dia a gente viva num mundo onde nossa força não precise se provar em situações onde nosso corpo e nossa existência são invadidos. 

Algumas pessoas me procuraram para falar que vou destruir a casa, a vida e o emprego de pessoas. Sinceramente, quem tem que se preocupar com o emprego dos funcionários e com o estabelecimento são os responsáveis pelo local, que não fizeram nada para que essas situações - denunciadas a algum tempo - deixassem de ocorrer. Eu não estou destruindo nada, estou lutando e vou lutar até o fim pelos meus direitos e pelo de muitas que não conseguiram ter a atitude que eu estou tendo. 

Muitos esperam da vítima uma atitude passiva e de mulheres que lutem, mas só até o ponto que não cause incômodo, porque aí já é ir longe demais. Enquanto mulher negra, é muito fácil cair no estereótipo racista de mulher raivosa, mas neste momento, o nome que for dado a minha indignação pouco ou nada me importa. Meu interesse são os resultados. 

No mais, agradeço o apoio dos órgãos responsáveis, da gabinetona e de todas aqueles que estão comigo nesse processo.

Naty Andrade é jornalista do Brasil de Fato MG

---

Este é um artigo de opinião, a visão da autora não necessariamente corresponde a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida e Ana Carolina Vasconcelos