Minas Gerais

Coluna

Brincar para adiar o fim do mundo

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"Brincar me parece, hoje, mais do que nunca, uma das formas mais confiáveis de adiarmos o fim do mundo! " - Foto: Jotta Casttro/ SEEDF
Big techs estão a lucrar com a dependência e a doença

Por Luciano Mendes

A semana passada, minha colega Natália Gil, publicou aqui, neste espaço, um texto em que problematizava a proposta do MEC de proibir o uso de celulares na escola. Argumentava, dentre outras coisas, que enquanto os adultos ficarem, eles também, presos às telas e não conseguirmos enriquecer as experiências infanto-juvenis para que elas fiquem tão ou mais interessantes quanto as que, suposta ou realmente, encontramos nas telas, em vão serão nossos esforços para as afastarmos dos celulares e dos tablets.

Ao mesmo tempo que lia o texto da Natália e concordava com ela, a mais de 7.500 quilômetros, eu visitava as Escola do Brinquedo Tradicional Popular, nos arredores de Coimbra, acompanhado pelo professor Luiz Carlos Rena, brasileiro, e pelos responsáveis pela bela e digna instituição portuguesa:  o professor João Amado e o senhor Narcindo Cunha, seu braço direito na sustentação da escola.

Visitar a escola, ouvir o professor João Amado e o senhor Narcindo Cunha falando com tanto entusiasmo sobre os brinquedos tradicionais portugueses, sobre suas próprias infâncias e as infâncias que, bem ali, há milênios foram sintetizadas naqueles objetos culturais e nos textos e imagens que os acompanhavam, me fez lembrar, ao mesmo tempo, do hoje, trazido pelo texto da Natália, e do ontem, a minha própria infância.

Ao manusear os brinquedos fui sendo invadido por lembranças e emoções há muito esquecidas. O corpo foi invadido, uma vez mais, pela sensação de brincar com boizinhos fabricados com maxixe e pedacinhos de pau, com bolas fabricadas com meias velhas e restos de pano das costuras da minha mãe, com biroscas (bola de gude), com bolas feitas de bexiga de porco, com apitos feitos de talos de folha de mamão, com barquinhos de papel, com atiradeira, com perna de pau e sapatos de lata e uma infinidade de outros brinquedos que fabricávamos.

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Eram tempos em que, na minha casa e na casa de boa parte dos vizinhos mais próximos, não havia rádio, televisão ou, mesmo energia elétrica, e a vida não era nem um pouco fácil para as crianças e para as pessoas adultas e, às vezes, nem tão adultas assim, do meu meio. Os tempos e os imperativos mais ou menos conhecidos da natureza humana ou não humana se impunham. E se havia muito sol ou chuva em excesso ou em escassez, a vida mudava radicalmente. Assim como a maior ou menor maestria, ou o poder materno para lidar com as artes para evitar a gravidez podiam ser decisivas para o tamanho e, portanto, a sobrevivência da prole.

Eram tempos, pois, em que o trabalho se impunha para a maioria desde muito cedo, abreviando as infâncias e, mesmo, a escola, isto quando esta existia. No entanto, mesmo quando o trabalho era um imperativo e a escola uma oportunidade, os brinquedos e as brincadeiras povoavam as experiências infantis, sobretudo as masculinas, ainda que as meninas com quem convivi, em casa e fora dela, nunca deixaram de inventar artimanhas pra brincar, mesmo quando estavam trabalhando.

Brincar para transformar

Hoje, aos 60 anos, pensando no passar do tempo que me conduziu até aqui, e a terras tão distantes, me lembro da música do Chico Buarque, de 1967, em que ele poetizava sobre o impacto da televisão nas sociabilidades: “Homem da rua/Com seu tamborim calado/Já pode esperar sentado/Sua escola não vem não/A sua gente/Está aprendendo humildemente/Um batuque diferente/Que vem lá da televisão.... O homem da lua/Por ser nego conformado/Deixa a lua ali de lado/E vai ligar os seus botões/ No céu a lua/Encabulada e já minguando/Numa nuvem se ocultando/Vai de volta por sertões.”

Como lembra a Natália, a experiência com os celulares e tablets é, hoje, muito mais intensa, inclusive pelo fato de que, ao contrário da televisão, tais aparelhos podem ser levados para onde a gente for e se tornaram quase que onipresentes na vida de boa parte da população, inclusive infantil.

Eu, cá com meus botões, mais ou menos conformado, como o personagem de Chico Buarque, não tenho dúvidas de que a nossa capacidade de adiar o fim do mundo está diretamente articulada e dependente dos modos como vamos enriquecer nossas vidas e as das novas gerações com outras experiências tão ou mais significativas e prazerosas que as proporcionadas pelas big techs.

Pessoas tristes não são confiáveis para fazer boa política. E é justamente com estas pessoas raivosas, tristes ou dependentes que as empresas que nos adoecem e estabelecem necropolíticas para lucrar, estão a contar!

Por isso, escolas como aquela conduzida pelo professor João Amada e  pelo senhor Narcindo Cunha, em Coimbra, são fundamentais. Pois brincar me parece, hoje, mais do que nunca, uma das formas mais confiáveis de adiarmos o fim do mundo!

Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)

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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida