O professor confiou e mediou uma ação verdadeiramente educativa
Por Kelly Maria Evangelista, Samira Maria Araújo e Telma de Souza Santos Viana
Ele adentrou na sala e sem muita demora “Oh! Bendito o que semeia livros…” éramos alimentados no banquete literário. A conexão foi estabelecida. Sabíamos que nossos encontros seriam permeados pela premissa de como aprendemos. Entre as atividades que discutimos para o plano de curso, havia a proposta da escrita autoral de uma memória ou autobiografia da própria escolarização. Teríamos que elaborar um artigo sobre um período do percurso de escolarização dos estudantes na formação da educação básica, à luz das reflexões teórico-científicas vistas em sala de aula.
Houve um grande burburinho, um estranhamento por parte da turma, afinal estávamos no início do curso e não éramos escritores, ou pelo menos até então não pensávamos que poderíamos vir a ser. “Escrever o quê? O relato da minha vida não dá meia página…”.
Porém, com a problematização da historicização da educação, de forma esquematizada, lógica e didática, o professor foi proporcionando experiências significativas para nós, sujeitos plurais e diversos: muitos de nós oriundos das políticas de cotas, muitos vivenciaram o ensino médio na pandemia, por meio do ensino remoto, outros já na casa dos 50 anos de idade ou mais, trabalhadores e mães de família que chegavam à faculdade com fome de saberes, lacunas de aprendizagem escancaradas e sonhos nas mochilas.
Ele foi inspirando a turma a pensar a partir do contexto histórico da educação no país. Impossível não estabelecer associações e relações com fenômenos sociais graves que ainda assombram nosso futuro. Ele nos apresentou leituras consistentes sobre a educação. Aos poucos as lembranças do vivido foram ressurgindo na memória de cada um e a necessidade de registrá-las foi inevitável, culminando em 32 relatos.
Diante dos trabalhos, revendo o plano de curso, o professor propôs: “Topam publicar em livro os relatos escritos por vocês?”. E o riso tomou conta da turma: “Autores... publicar livro?”. Isso era impossível no imaginário da maioria. A experiência revitalizou a turma, deu sentido para nosso coletivo, fortalecendo nossa união na sala de aula e criando nossa identidade.
A partir daí a “Turma H” passou a ter sentido próprio, significado. A centralidade do nosso desenvolvimento acadêmico-profissional e pessoal se deu com a publicação de nosso percurso de escolarização, disponível no Portal de Livros Abertos da FAE/UFMG. Tivemos a oportunidade de ler e de ser lidos por diversas pessoas, leitores, com direito a divulgação e lançamento no Auditório Neidson Rodrigues.
Fruição e participação
A peculiaridade das aulas do professor passava pela fruição e a participação voluntária dos alunos, ora ele lia para nós, ora nós líamos os poemas ou trechos dos livros, sendo que alguns interpretavam os poemas, dramatizavam, gerando vínculos afetivos no coletivo. Os livros que o professor nos apresentou eram de outros professores e escritores, colegas de trabalho e de vida. Ele nos oportunizou conhecer diversos escritores e diferentes marcadores sociais, culturais e diferentes maneiras de ser no mundo, gênero, região, religião, cor de pele, etnia.
Esse tempo e espaço literário gerava leveza para o encontro da aula. Formava vínculos, íamos nos conhecendo a partir das reflexões geradas com as leituras.
Outra metodologia que nos inspirava eram as referências históricas. Fizemos um seminário em que alguns colegas não citaram devidamente as referências científicas e confundiram as referências históricas e com muito trato educativo incentivou a busca pelo conhecimento teórico-científico, realizando devolutivas em tempo oportuno, respeitando nossas diversidades e o tempo de cada um. Ademais, nos incentivou a criar uma rede de apoio entre estudantes para os estudos, utilizando trabalhos em grupo, na forma de seminários, garantindo aprendizado coletivo e colaborativo entre as diversidades na formação destes grupos e sujeitos.
A escuta docente do professor para conosco foi muito atenta e cuidadosa. E como não poderia deixar de ser, adorávamos quando ele dizia: “O que lhe parece isto?”. Provocando o nosso posicionamento, incluindo nossa fala no contexto, envolvendo-nos para que participássemos das decisões, garantindo nosso comprometimento com a turma, com a aula e com ele. Quando ele realizou a proposta da publicação do livro, cuidou para que fosse uma decisão coletiva. Tivemos autonomia para cuidar de todos os detalhes, com clareza de propósito, rigor metodológico, com prazos e entregas pactuadas.
E chamava à responsabilidade em situações que assim o exigia. Ele foi firme na condução dos trâmites e garantiu a abertura para diálogo respeitoso. Importante destacar que todas as etapas e resultados foram compartilhados na turma H.
Sem dúvida, o que mais tocou nossa turma foi a forma como o professor demonstrou que confiava em nossa experiência educacional em sala de aula. Na avaliação de nosso relato, primeiro cuidou para a fruição, a escuta, o acolhimento da forma como conseguíssemos manifestar nosso pensamento para depois o ajuste ao formato demandado pela situação discursiva. Garantiu nosso sentimento de pertencimento à turma, mobilizou para a criação da identidade da “turma H”.
Nos lançamentos da obra que resultou deste investimento coletivo, que ganhou o título de Coletivas e singulares: memórias escolares de estudantes de Pedagogia, na UFMG e na Biblioteca Pública de Minas Gerais. Deu-nos autonomia, garantiu nossa “ocupação do palco tradicional das autoridades”, afinal também ali naquele momento nos tornamos autoridades e conseguimos reunir todos os professores doutores da FAE para participarem do lançamento do nosso livro. E isso foi muito significativo para nós.
Fizemos história ao lado do professor, literalmente.
Tudo porque o professor confiou e mediou essa ação educativa. Aprendemos refletindo a partir de nossas memórias, “rasgos coletivos e individuais”, regados pelo letramento científico, problematizando práticas pedagógicas na formação de bons pedagogos. Sem dúvida, “a memória só existe em função do encontro do corpo com o mundo” e foi isso que bebemos direto na fonte do professor, ofício de sucesso para nossa turma. Depois desse semestre, a turma H não é mais composta somente de alunos. Somos alunos autores, que vislumbram perspectivas de futuro na docência, muito maiores do que quando iniciamos a formação.
Ele marcou nossa história na FAE/UFMG, nossas existências!
Kelly Maria Evangelista, Samira Maria Araújo e Telma de Souza Santos Viana são alunas do Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da UFMG.
*Texto apresentado à Pró-Reitoria de Graduação da UFMG como justificativa à solicitação de concessão de homenagem ao professor Luciano Mendes de Faria Filho dentro do evento Docência: sucessos do ofício – 2024 organizado pela Diretoria de Inovação e Metodologia do Ensino (GIZ);
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Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida