A descoberta do mundo da política veio ligada ao gosto pela MPB
Por Luciano Mendes
No fim de semana passado, fui ao Clã Espaço e Cultura para a celebração do aniversário da filha de um amigo querido. Enquanto a música não rolava, ficamos conversando sobre nossas infâncias. E em um certo momento, me lembrei que, quando eu morava no interior de Minas Gerais, na cidade de Pocrane, lá pelos anos 1970, em minha casa não havia nenhum aparelho elétrico e, claro, muito menos, eletrônico. Nem um radinho de pilha existia!
Televisão era algo raro ainda, e, na maioria das vezes, o que havia era um rádio, daqueles grandes, a pilha. Foi na casa dos meus avós que eu tomei contato mais de perto com o rádio, ainda criança pequena. Mas, para meu desassossego, o rádio ficava o dia todo, e acho que a noite também, na Rádio Relógio, que a cada instante dizia a hora, os minutos e os segundos. Música, não me lembro de ter ouvido. Ali, só se ouvia mesmo o tic-tac das horas a passar!
A casa dos meus avós foi, aliás, minha primeira experiência, in loco, de que a história não é progressista e que nem sempre as coisas caminham para o melhor dos mundos: me intrigava, hoje eu sei o porquê, que a casa tivesse todas as fiações, bocais para lâmpada e os apagadores/acendedores, mas não tinha energia elétrica. Em algum momento, a energia havia sido desligada e nunca mais fora religada, e assim a vida seguia.
Mesmo quando fomos morar lá, já no final dos anos 1970, tínhamos que usar lamparinas a querosene e esquentar a água para o banho na serpentina do fogão à lenha.
Quando, no final de 1977, nos mudamos para Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, enfim um radinho — mas não ainda a televisão —, entrou em nossa casa. Era por ele que, durante toda a madrugada, podíamos ouvir o programa do Zé Bettio, transmitido pela Rádio Record para todo o Brasil. Era uma forma de continuar cultivando gostos, trejeitos, manias rurais, ainda que a partir de São Paulo, recordando as coisas da roça.
Mas, o que batia mais forte mesmo eram as músicas caipiras “raiz”, como se diria hoje: boi, boiada, vaca estrela, boi fubá, o cheiro de terra depois da chuva, a poeira da estrada, a lida com os bichos e as coisas da roça. Tudo isso, agora, tinha um outro significado e acalentava sentimentos, às vezes doídos, de saudade e nostalgia.
MPB e teologia da libertação
Toda essa sensibilidade começou a ser abalada em mim, na entrada dos anos de 1980, com o contato com o melhor da MPB, possibilitado pelas novas redes de sociabilidades políticas e religiosas nas quais eu adentrava. Eram tempos de grupos de jovens que, animados pela Teologia da Libertação e por pastorais populares, esperançavam transformar o mundo, e a si mesmos, pelo engajamento político e pela celebração religiosa, mas não apenas por esta, mas pela vida. Nesse universo, ainda que a música caipira comparecesse, pontificavam Milton Nascimento, Beto Guedes, Chico Buarque, Elis Regina, Alceu Valença, Zé Renato, a turma recém-aparecida do Vale do Jequitinhonha e, vez ou outra, Luiz Gonzaga.
A descoberta do mundo da política e as possibilidades de transformá-lo, estiveram, assim, para mim, umbilicalmente ligadas a um determinado gosto musical e à formação de uma sensibilidade tipicamente urbana que, felizmente, nunca conseguiu suplantar completamente aquela original, vinda comigo da roça. A gente sai da roça, mas a roça não sai da gente, como ouvi inúmeras vezes.
É isso que, talvez, a ida ao Clã Espaço e Cultura na semana passada, para a festa de aniversário, tenha oportunizado: o reencontro com sensibilidades, gostos e sons que andavam um pouco esquecidos no corpo e na alma.
Lá, ao lado de uma trupe masculina que tocava e cantava todas aquelas músicas da turma dos anos 1970 e 1980, estava também, a comemorar um não sei qual acontecimento, o grupo Aruanda. Foi por meio de seus integrantes que a sanfona entrou na roda da MPB e as cantigas de roda nos convidaram a soltar a voz, numa muito feliz integração de Milton Nascimento com o melhor de nossas cantigas tradicionais, aí incluídas, por certo, algumas composições do velho Lua.
Em um momento em que estávamos, aqui em Belo Horizonte, cidade onde resido hoje, entre a manutenção de um pacto político minimamente democrático e o fascismo e suas políticas de morte, foi importante entrar na roda, reviver histórias e memórias, ouvir e cantar músicas — mesmo com todo o desafinamento que me é peculiar (e sempre lembrado pelas pessoas mais queridas!).
Foi um espaço-tempo de voltar a esperançar a vida e de acreditar que é possível, sim, embelezar o mundo, deslocar e produzir sentidos e construir novas sensibilidades, mais solidárias e amáveis, por meio da boa música, da roda de conversa e dos abraços fraternos.
Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida