A risada que irrompe, contagiante, uma sala de estar no bairro Santo Antônio, em Belo Horizonte, é fácil de ser reconhecida. O sonoro e alegre “bom dia” é acompanhado de uma uma presença magnética, que toma para si o espaço no momento exato em que pisa nele para conceder uma entrevista ao Brasil de Fato MG. O nome dela é Teuda Bara, uma das fundadoras da companhia de teatro mineira Grupo Galpão.
Ao seu lado, duas figuras essenciais em sua trajetória também se unem à conversa. Pedro Estrada, à sua direita, é diretor do curta-metragem “Ressaca”, que chega a Belo Horizonte como parte da programação do 25º Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (FestCurtasBH), nesta terça-feira (29).
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O filme reverencia a trajetória de Teuda e foi, inclusive, atração da mostra Première Brasil: Competição Novos Rumos do Festival do Rio 2024.
Do outro lado, à esquerda, está João Santos, autor do livro “Teuda Bara: comunista demais para ser chacrete”, que inspirou o projeto audiovisual. A publicação é uma biografia da atriz, que guia o leitor entre várias histórias e uma seleção de fotos do seu arquivo pessoal, e foi pensada como trabalho de conclusão de curso de jornalismo do escritor.
Parte do filme se passa dentro da casa de Teuda, espaço que imprime a sua personalidade nos mínimos detalhes, dos quadros e cores vibrantes ao pomar que se instala no quintal, cheio de frutos, assim como a sua própria carreira, cercada de momentos marcantes.
“No dia da filmagem, o Pedrinho e o João sempre me diziam: ‘Isso vai virar um filme. Vou filmar até no seu banheiro’. Jesus! E, menino, foi incrível. Foram dois dias de filmagem, uma loucura. A casa toda virou um set de filmagem. Eles ainda tinham a casa da Angela [vizinha], que ela emprestou para ser um ponto de apoio, para abrigar os atores, atrizes, maquiagem e figurino”, conta a atriz, em comemoração à conclusão de um novo capítulo de sua vida.
Uma trajetória potente
O curta-metragem “Ressaca” é o ponto de partida do projeto de longa-metragem intitulado “Balbúrdia”, que está em fase de captação de recursos e já recebeu apoio de Leis de Incentivo.
A duração do projeto, segundo Pedro Estrada, embora suficiente para mostrar quem é a atriz, não dá conta de abarcar a grandiosidade de sua história. Ela própria se descreve como uma mulher com mais de 80 anos de idade e mais de meio século de carreira.
“Quando tivemos a ideia de fazer o filme, vi que a história era grande demais para ser contada só em um curta-metragem. Então, usamos a estratégia de desenvolver um longa-metragem, mas primeiro fizemos o ‘Ressaca’, que é um curta com linguagem própria, mas que também serve para abrir caminho para o longa”, afirma o diretor.
Teuda Bara já foi a estrela em peças como “Álbum De Família”, de Nelson Rodrigues, “Romeu e Julieta”, com direção de Gabriel Villela; em filmes como “O Palhaço”, de Selton Mello; e até na televisão, a exemplo de “Filhos da Pátria”, seriado do Globoplay. Mas o currículo é tão extenso que se recusa a caber numa linearidade.
Pelo menos essa foi a percepção de João Santos, quando resolveu imprimir a história de Teuda em um livro, e quando participou da escrita do roteiro do curta “Ressaca”.
“Se tivéssemos seguido essa linha de contar tudo sobre a vida da Teuda, ficaria faltando muitas coisas. Então, fizemos quase uma curadoria das histórias que ela conta. Queríamos preservar a voz dela, porque ela tem essa característica de contar as histórias muito bem”, relembra o autor.
“Isso foi algo que quisemos manter no papel, na tela e no palco. Acho que, quando conseguimos aproximar o personagem da pessoa real, é quando temos mais sucesso. E foi muito especial filmar no banheiro dela, na casa dela, no universo dela, com o Galpão, o grupo que ela fundou há 40 anos”, descreve João.
Filmar a intimidade de Teuda é uma oportunidade para que o público possa ir além do que está acostumado a ver no palco, como se fosse um filme de “bastidores”, revela Pedro Estrada.
“O que eu mais amo na Teuda é que, além de ela ter fundado o grupo Galpão e ser uma atriz icônica, ela é uma grande revolucionária nos afazeres mais simples do cotidiano. Conversamos muito sobre como ela sempre foi muito particular em sua rotina e como isso tornava suas experiências especiais, dignas de serem contadas em um filme, uma peça ou um livro”, pontua o diretor.
“Quantas histórias, músicas e artistas incríveis vão se perdendo por falta de registro? A história é o que fica”, reflete Teuda Bara sobre a importância de ter um filme que agora deixa marcada a sua trajetória para as próximas gerações.
Para Pedro, é crucial registrar essas experiências, principalmente enquanto as pessoas ainda estão vivas e podem participar.
“Não devemos esperar que alguém não esteja mais entre nós para expressar o quanto amamos, respeitamos e admiramos essa pessoa como uma referência em nossas vidas. Claro, é importante resgatar e honrar aqueles que já se foram, mas é muito mais gratificante fazer isso em vida, como estamos fazendo agora”, alegra-se.
Reflexões de um fazer que não pode ser mecanizado
Quando falam sobre futuro, inclusive, os três se mobilizam em torno de um mesmo assunto que agora preocupa - e em alguns casos até ajuda – artistas em todo mundo: a inteligência artificial (IA).
Teuda, embora tenha gravado uma cena com auxílio de IA para o filme, preocupa-se com a proporção que o mal uso dela pode proporcionar em longo prazo.
“Mas o teatro fica um pouco livre disso. O teatro, por exemplo, é uma labuta. Você pega um texto, desenvolve um personagem, tem várias coisas que interferem, há a música, a luz, a interpretação. O teatro é a gente. Você criar o personagem, contar uma história”, opina a atriz.
No caso dos roteiristas, o perigo é grande, lembra Pedro.
“A inteligência artificial já está aí com o ChatGPT e outras ferramentas. Ela realmente tem a capacidade de criar algo do zero, o que coloca em risco a criação autoral de pessoas que trabalham nisso há anos, estudando para construir suas carreiras. Uma coisa é usar a IA para dar suporte em pesquisas e facilitar o processo de criação. Outra coisa é colocar a IA na linha de frente da criação artística”, reforça o diretor.
Para ele, a IA seria útil para eliminar trabalhos braçais, coisas que demandam muito esforço mecânico. Mas, no campo da criação autoral, isso ainda precisa ser responsabilidade das pessoas.
Já João acredita que, para algumas categorias, o trabalho já estava mecanizado.
“Houve um tempo em que os jornalistas escreviam matérias como: ‘As 10 melhores séries da Netflix sobre términos’ ou ‘As melhores receitas de lasanha’, tudo para engajar nas redes sociais. Isso já era um trabalho mecanizado. A gente já estava trabalhando dentro dessa lógica”, comenta.
“Então, colocar uma máquina para fazer isso não mudaria muito. Eu perderia meu número de caracteres, mas em termos de produzir conteúdo relevante, que exige pensamento crítico, a diferença seria mínima”, avalia João.
Mas a tecnologia também foi aliada de Teuda em momentos oportunos, como a pandemia de covid-19, que a obrigou a entrar num universo que não tinha tanta familiaridade. Nas palavras dela, virou uma “grande hacker cibernética”.
“Foi ótimo, sabe? Isso me manteve ativa. Durante a pandemia, fizemos várias peças online, trabalhos de poesia e música, e até produções de filmes, tudo de forma remota. Isso foi muito importante porque nos manteve conectados. No entanto, é preciso saber utilizar essas ferramentas da maneira certa. Eu, por exemplo, uso essas tecnologias para corrigir ortografia e melhorar o texto, mas sempre partindo da nossa autoria. É importante que a criação seja nossa, que a essência do autor permaneça”, alerta a atriz.
Quem é Teuda Bara?
Irreverente, Teuda Bara, nas palavras de sua amiga e atriz Inez Peixoto, largou uma vida que programaram para ela. Fugiu do que esperavam que ela fosse, transgrediu as expectativas. Em um primeiro momento, decidiu largar as ciências sociais, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), para se dedicar ao teatro. Depois disso, o mundo ficou pequeno para mulher que sempre teve no DNA a grandiosidade.
“É muito engraçado, porque minha mãe era dessas mulheres católicas, criada no romantismo da época. Ela vivia envolvida com procissões e festas religiosas. Meu pai era militar, todo disciplinado, e minha mãe queria que eu fosse irmã de caridade, passou a vida lutando por isso. Coroei quase todas as nossas senhoras de BH. Eu cresci frequentando várias igrejas em Belo Horizonte, e acho que já era algo do teatro, porque eu adorava aquilo. Ganhava doces, cartuchos de balas, e adorava tudo isso”, conta, com muito bom humor.
O pai queria que ela fosse advogada e a mãe sonhava com o casamento. Cresceu achando que deveria aprender a bordar, a cozinhar, “ser uma moça prendada”, mas nada disso funcionava para ela. “Eu não me encaixava nessa história”, diz.
Desde cedo, passou a viver com o horizonte voltado à liberdade, embora tivesse tudo controlado, do namorado às roupas que vestia.
“Quando uma amiga minha se casou, eu pensei: ‘nossa, que beleza, agora ela não tem mais pai para criar caso com ela’. Um dia, eu fui chamá-la para ver um filme e ela me disse: ‘não posso, agora sou uma mulher casada’. Eu pensei: ‘credo. Não quero isso para mim’”, conta, ao cair na gargalhada.
No auge da ditadura militar no Brasil, Teuda, em meio às opressões políticas, embora com medo, foi trabalhar na Livraria do Estudante, um ponto de encontro de pessoas ligadas à esquerda. Conheceu de Clarice Lispector a Ziraldo.
“Sempre tinha lançamento de livros, com muita caipirinha e conversas interessantes. Eu adorava”, relembra.
Nesse momento, ao conhecer outras pessoas e abrir para outros assuntos, foi apresentada, pelo seu irmão, Tibério, à literatura de Jorge Amado, com o livro “Jubiabá”. Esse foi o ponto de partida para o início de sua coleção e sua relação próxima com os livros.
“A importância dessa mudança foi enorme para mim, não só como leitura, mas também como mudança política”, pontua.
Onde assistir “Ressaca”?
O olhar audiovisual sobre quem é Teuda Bara agora finalmente pode ser assistido pela população belo-horizontina. O filme terá exibições gratuitas nos espaços abaixo:
Serviço: Estreia do Curta-metragem “Ressaca”
Data: 29/10, às 21h - Sala Humberto Mauro, no Palácio das Artes, Avenida Afonso Pena, 1537
Data: 30/10, às 20h30 - Sala Juvenal Dias, no Palácio das Artes, Avenida Afonso Pena, 1537
Data: 31/10, às 15h30 - Sala Humberto Mauro, no Palácio das Artes, Avenida Afonso Pena, 1537
Os ingressos deverão ser retirados meia hora antes das sessões.
Edição: Ana Carolina Vasconcelos