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O avanço da exploração do lítio no Vale do Jequitinhonha: desenvolvimento para quem?

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Reprodução - Mara Bianchetti
Queremos que a energia limpa seja gerada respeitando as comunidades

O debate sobre a transição energética, que propõe a redução da dependência de combustíveis fósseis e o aumento no uso de fontes de energia limpa, tem se intensificado, especialmente diante dos impactos socioambientais das mudanças climáticas. O caso do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, ilustra bem essa questão, especialmente com o recente impulso dado pelo governo Zema (Novo) ao projeto “Vale do Lítio”, destinado à exploração de reservas locais.

Lítio, mineral essencial na produção de baterias e outras tecnologias limpas, é apontado como chave para a transição. O Brasil possui a sua maior reserva de lítio em sua região semiárida. Contudo, essa exploração levanta preocupações significativas sobre os impactos nas comunidades locais, cuja voz tem sido cada vez mais silenciada pela promoção do projeto.

O governo estadual lançou o projeto em maio de 2023, anunciando a criação de um “Vale do Lítio” e buscando atrair investimentos para a região. O lançamento ocorreu juntamente com o Ministério de Minas e Energia, em Nova York, na Nasdak, a maior bolsa de valores do mundo em inovação e tecnologia.  O projeto diz respeito à atração de investimento e empresas para o Vale do Jequitinhonha e Norte de Minas Gerais, onde está localizada a maior reserva comprovada de lítio no Brasil.

De acordo com a Agência Minas Gerais, o “Vale do Lítio” é formado por 14 cidades, sendo elas: Araçuaí, Capelinha, Coronel Murta, Itaobim, Itinga, Malacacheta, Medina, Minas Novas, Pedra Azul, Virgem da Lapa, Teófilo Otoni, Turmalina, Rubelita e Salinas. Estudos realizados pelo Serviço Geológico Brasileiro apontam a existência de 45 jazidas de lítio nesses municípios.

Moradores relatam exclusão e prejuízos  

Depoimentos coletados no âmbito da pesquisa de minha autoria “O avanço da exploração do lítio no Vale do Jequitinhonha (MG) e a reprodução das desigualdades e dependências internacionais”, relatam a falta de informação e um processo de consulta inadequado. Um atingido de Araçuaí comentou: “Apenas temos propaganda, sem acesso a informações diretas do Estado”, refletindo a carência de diálogo transparente.

Em resposta à solicitação de acesso ao Projeto “Vale do Lítio” no Sistema Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão, com base na Lei Geral de Acesso a Informações Públicas (Protocolo 05130.000004/2023-21), o governo afirmou que não havia documentos estruturantes, indicando uma falta de planejamento que integre a exploração mineral ao desenvolvimento local sustentável. Um representante do governo declarou: “O projeto é um esforço concentrado para a atração de empresas. Não dispomos de outros documentos sobre o assunto”.

Além disso, moradores denunciaram a exclusão e retaliações a grupos críticos ao projeto. Uma atingida de Medina lembrou: “O governador limita o repasse de informações, especialmente para sindicatos e movimentos sociais”. Isso revela a preocupação com a falta de participação popular nas decisões que afetam diretamente suas vidas.

Os impactos, como aumento da violência e assédio sexual, sobrecarga no sistema de saúde e o deslocamento forçado de famílias são constantes nas falas de quem reside na região. Outro atingido lamentou: “A saúde está saturada. Antes esperávamos 40 minutos para atendimento; agora são horas”, evidenciando a deterioração da infraestrutura devido à chegada das mineradoras.

Especulação imobiliária e o aumento do custo de vida estão prejudicando as famílias

Os danos ambientais são igualmente alarmantes. O aumento no consumo de água e a destruição da paisagem com desmatamentos e crateras têm gerado descontentamento. Uma indígena de Cintra Vermelha de Jundiba destacou: “Essa exploração impacta nosso território sagrado, onde realizamos nossos rituais e cultivamos a terra”.

No aspecto econômico, a especulação imobiliária e o aumento do custo de vida estão levando comunidades à precarização. Outra residente de Araçuaí expressou: “Os alugueis estão absurdos. Muitas pessoas estão sendo obrigadas a sair de suas casas para atender às mineradoras, que pagam mais”.

Com a priorização da participação de empresários e prefeitos na tomada de decisões, os moradores sentem que suas vozes são ignoradas. Um atingido de Virgem da Lapa lamentou: “as empresas e o governo só ouvem os grandes proprietários de terra. Eles decidem tudo por nós”.

Nas dimensões culturais e sanitárias, as comunidades afirmam que suas identidades estão sendo ameaçadas pelo renome "Vale do Lítio". Um atingido de Itaobim advertiu: “O governador quer mudar nossa cultura. A mineração está alterando a relação com nosso território. Estão trocando Vale do Jequitinhonha por Vale do Lítio, vendendo a gente junto com o lítio”. Além disso, doenças respiratórias e contaminação têm gerado preocupação, com relatos sobre condições de saúde deterioradas associadas à extração.

Por último, a frustração com promessas não cumpridas por parte do governo e empresas é palpável. Uma atingida de Itaobim enfatizou: “Não espero investimentos, se houvesse, já teria chegado”. Este sentimento é compartilhado entre muitos que se questionam se a exploração trará realmente benefícios à região ou se será apenas mais uma forma de exploração econômica.

Neste contexto, a resistência das comunidades é evidente e fundamental. Elas clamam por um desenvolvimento que não apenas respeite suas raízes e direitos, mas que realmente os inclua. Uma residente de Capelinha resumiu bem a aspiração coletiva: “não queremos ser explorados, queremos ser parte do desenvolvimento”.

Assim, o projeto "Vale do Lítio", que poderia se apresentar como uma oportunidade de crescimento econômico e transição energética, carece de responsabilidade, diálogo e inclusão.

Ciclo vicioso de exploração

O futuro do Vale do Jequitinhonha depende do reconhecimento dos direitos de suas comunidades e do verdadeiro compromisso em transformar o modelo de exploração em um desenvolvimento que beneficie todos e não apenas uma elite econômica e política. O debate sobre a transição energética não deve se limitar à extração de recursos, mas envolver a construção de um futuro sustentável, onde as vozes locais são ouvidas e consideradas.

A insatisfação crescente nas comunidades levanta questões sobre a viabilidade de um modelo de desenvolvimento que ignora as necessidades e anseios da população. Os impactos sociais, econômicos e ambientais já visíveis não apenas comprometem a qualidade de vida, mas também desmantelam as estruturas sociais e culturais que sustentam essas localidades há gerações.

“O que vemos é um ciclo vicioso de exploração”, apontou um atingido de Teófilo Otoni. “As promessas de progresso se desvanecem, mas os problemas persistem”. Esse sentimento é amplamente compartilhado com muitos, acreditando que, sem um verdadeiro envolvimento da população, o “Vale do Lítio” pode se transformar em mais uma fase de colonização moderna, onde os recursos são extraídos e os benefícios se evaporam.

Uma liderança da cidade de Araçuaí destacou a urgência de uma orientação que coloque os interesses e direitos dos atingidos em primeiro lugar. “As mineradoras e o governo precisam entender que nossas vidas não são apenas números em um relatório. Eles devem respeitar a Terra e o que ela significa para nós”, disse ela, enfatizando o vínculo inseparável que as comunidades têm com seus territórios.

Nessa perspectiva, os moradores clamam por um planejamento que contemple não só a exploração do lítio, mas um desenvolvimento integrado, que busque diversificar a economia local por meio de investimentos em infraestrutura, educação e saúde. Apontando para exemplos de desenvolvimento responsável, uma atingida sugeriu: “devemos ter acesso à tecnologia e à educação que realmente capacitem os jovens da nossa comunidade para oportunidades de emprego dignas, aqui mesmo, em vez de depender das vagas precarizadas que surgem com a mineração”.

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A luta por direitos é também uma batalha por justiça. As comunidades exigem reparações pelos danos já causados e a implementação de políticas que garantam um futuro melhor para as próximas gerações. “Não queremos apenas uma compensação financeira, queremos mudanças reais em nossas comunidades”, insistiu um indígena da região.

A necessidade de diálogo e respeito à consulta prévia, conforme prevista por legislações como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), é uma exigência primordial. “As empresas e o governo não podem decidir o nosso destino sem nos incluir nessa conversa”, afirmou um atingido de Capelinha.

Este chamado à ação revela a determinação das comunidades em não apenas sobreviver, mas viver plenamente, com dignidade e oportunidades. É um claro aviso ao governo Zema e às empresas: a verdadeira transição energética deve ser justa e sustentável, respeitando as vozes e os direitos dos que vivem nos territórios afetados.

Ao final, o que se observa no Vale do Jequitinhonha é um microcosmos das tensões globais em torno da transição energética. Se, por um lado, a exploração do lítio se posiciona como uma peça chave na nova economia verde, por outro, não se pode ignorar os custos sociais e ambientais que isso acarreta.

“Não queremos só energia limpa para o mundo, queremos que essa energia seja gerada respeitando a nós e nosso meio ambiente”, concluiu um morador de Itinga. Essa frase é um resumo da luta por justiça e dignidade, onde as comunidades do Vale do Jequitinhonha não se resignam a ser apenas meras fontes de riqueza, mas buscam se tornar protagonistas de suas histórias e guardiãs de seu território.

Assim, o desafio é claro: construir um futuro onde o progresso não venha às custas de quem sempre habitou e cultivou a terra. Somente assim, a verdadeira transição energética poderá ser uma realidade, que traga benefícios e oportunidades a todos.

Marina Paula Oliveira é atingida pelo rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, Brasil. Graduada, mestre e doutoranda em Relações Internacionais pela PUC-Minas e autora do livro “O preço de um crime socioambiental: os bastidores do processo de reparação do rompimento da barragem em Brumadinho”. É defensora de direitos humanos e militante do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e Movimento Brasil Popular (MBP).

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Leia outras artigos de Marina Paula Oliveira em sua coluna no Brasil de Fato MG

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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a opinião do Brasil de Fato

Edição: Elis Almeida