Atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, município de Minas Gerais, finalmente têm um acordo de repactuação assinado. O valor previsto para reparar os danos causados pelo crime da Samarco/Vale/BHP Billiton em 2015 é de R$ 170 bilhões, incluindo R$ 38 bi já gastos e R$ 32 bi em obrigações a fazer das mineradoras.
Mas, o que está incluído nesses valores? O Brasil de Fato MG analisou as propostas e conversou com o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e com assessorias técnicas independentes (ATIs) para entender os pontos positivos e negativos do acordo.
O que diz o acordo?
Os três pilares principais da repactuação estão focados nas pessoas atingidas, na recuperação ambiental e na retomada econômica da região. Do valor pactuado, R$ 100 bilhões serão repassados ao poder público ao longo de 20 anos e R$ 32 bilhões serão destinados a indenizações individuais e obrigações pelas quais as empresas continuam responsáveis.
Thiago Alves, integrante da coordenação nacional do MAB, é crítico ao período estipulado porque, na data de assinatura do acordo, os atingidos já estão há 9 anos em luta por justiça.
“Há uma crítica do MAB à forma como as empresas conseguiram impor a sua vontade diante dos governos, diante das instituições, num tempo muito alargado, tanto é que o próprio presidente do BNDES, Aloizio Mercadante Oliva, já foi à imprensa dizer que vai fazer todo o esforço para adiantar o dinheiro, visto o prazo”, sinaliza.
Para ele, pensar em um processo de recuperação a longo prazo é importante, ou seja, a demora não é o problema, mas a questão é que “as empresas podem dizer que estão cumprindo um prazo, podem inclusive deixar para a última hora parte do desembolso e atrasar muitos programas”.
É o que também pondera Henrique Lacerda, economista e coordenador institucional geral do programa Médio Rio Doce da Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), ATI que atua na cidade de Barra Longa, que fica na região atingida.
:: Leia também: Vítimas da Samarco: os esquecidos de Barra Longa e a reparação que nunca existiu ::
“Apesar de acreditarmos que o tempo é muito longo para a reparação integral e definitiva, entendemos que alguns programas e ações devem se estender durante muito tempo para garantir a eficiência das políticas de reparação e o acesso amplo das pessoas atingidas, visto que há uma diversidade de setores que seguem com danos aprofundados”, observa.
Para ele, algumas das áreas afetadas são trabalho e renda, saúde e serviços socioassistenciais, meio ambiente e acesso à água, práticas culturais e religiosas; moradia, infraestrutura, educação, esporte, lazer e diversas outras.
Fiscalização
No montante total, R$ 38 bilhões já foram pagos, segundo as empresas, por meio da Fundação Renova, entidade que havia sido criada em 2016 para gerir o processo reparatório e foi extinguida no novo acordo, que estabelece um novo modelo de governança dos recursos.
:: Relembre: Samarco, Vale, BHP e Renova recebem condenação por "narrativa fantasiosa"::
Thiago Alves afirma, no entanto, que não há um real controle auditável do dinheiro, já que a fundação, por ser de direito privado, é oficialmente fiscalizada pelo Ministério Público de Fundações.
“O Ministério Público já reprovou em vários anos as contas da fundação, mas é muito difícil dizer o que foi gasto ou não. Na prática, o que nós avaliamos é que, conforme está nos próprios documentos já divulgados, a fundação gasta uma grande quantidade de dinheiro para se manter, para ter a sua estrutura e, na prática, viram um cabide de emprego para para muita gente”, critica.
:: Relembre: O crime da Vale em Mariana ::
Diante da impossibilidade de verificação dos gastos, Ana Carolina Fonseca e Marisa Versiani, da coordenação operacional da Cáritas, ATI que atua em Mariana, dizem que ainda há muito a ser feito em termos de reparação de direitos.
“Há casas que ainda não foram construídas, a retomada do modo de vida, acesso à água bruta nos reassentamentos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, problemas relacionados à execução dos projetos das casas já construídas, a falta do efetivo funcionamento de todos os bens públicos, a retirada da lama de rejeitos de propriedades da zona rural”, elencam.
Destinação dos recursos
Entre os R$ 100 bilhões destinados aos novos recursos, cerca de R$ 39 bilhões serão voltados diretamente aos atingidos, sem contar as indenizações. R$ 16 bilhões vão para recuperação ambiental; R$ 17 bilhões para reparações socioambientais, que também se referem indiretamente aos atingidos; R$ 15 bilhões vão para o saneamento e rodovias; R$ 1,66 bilhões para a Ação Civil Pública de Mariana; R$ 6,1 bilhões para os municípios; e R$ 1,86 bilhões serão destinados às questões institucionais e de transparência.
Na discriminação dos recursos, R$ 3,75 bilhões serão destinados ao Programa de Transferência de Renda, com auxílio mensal a pescadores e agricultores durante quatro anos.
R$ 6,5 bilhões vão para Programas de Retomada Econômica, nos eixos fomento produtivo (R$ 2 bi), rural (R$ 2,5 bi), e para Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação (R$ 2 bi).
R$ 5 bilhões deverão ser encaminhados à Constituição de Fundo Popular da Bacia do Rio Doce, para projetos e programas de retomada econômica e produtiva (deliberação direta das comunidades).
O MAB avalia que os fundos dos programas de transferência de renda, de retomada econômica e do fundo popular são avanços importantes, frutos da luta do povo.
“Esses três fundos estavam diretamente na pauta entregue pelo MAB, ainda no governo anterior, e na mesa do Conselho Nacional de Justiça”, diz Thiago Alves.
Contradições
No entanto, do ponto vista global, o integrante do MAB diz que os valores são insuficientes, haja vista o tamanho dos problemas. Sobretudo, segundo ele, na comparação com acordos como o de Brumadinho.
“Muito inferior, se compararmos ao número de municípios atingidos, ao tempo do dano, ao número global de pessoas atingidas. Agora, a grande luta é fazer com que esse valor chegue nas pessoas”, analisa.
:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::
Henrique Lacerda também diz que, considerando estudos de Instituições de Justiça que trabalharam no caso e os cálculos elaborados por assessores técnicos do Programa Médio Rio Doce da Aedas, os valores destinados ao novo acordo são insuficientes para atender de forma efetiva as necessidades da população atingida.
“A complexidade dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão requer investimentos significativos e contínuos, não apenas para a recuperação imediata, mas também para promover um desenvolvimento sustentável a longo prazo”, chama a atenção.
Para ele, é fundamental que esses recursos sejam direcionados de maneira equitativa, considerando as especificidades e vulnerabilidades das comunidades.
“É por isso que a Aedas acredita que, para o Programa de Transferência de Renda (PTR), por exemplo, deveria ser considerado um maior valor por família, adicionais por dependentes e a abrangência deveria ser para todas as pessoas que estão registradas no CadÚnico, diferente do proposto, que é só para as categorias de agricultores e pescadores”, detalha.
Da mesma forma, de acordo com ele, o eixo de criação do Fundo Popular tem os valores relativamente rebaixados, ao serem comparados com o dispêndio para a reparação na bacia do Rio Paraopeba no âmbito dos projetos de demandas das comunidades atingidas.
Vulnerabilidade social
R$ 640 milhões serão destinados ao fortalecimento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) nos municípios da bacia do Rio Doce. R$ 8 bilhões serão investidos nas comunidades
indígenas, povos e comunidades tradicionais.
No momento, segundo Henrique Lacerda, não há uma avaliação fechada sobre a suficiência do montante a ser destinado ao SUAS. No entanto, ao observar os cálculos feitos pela Aedas, há grande chance do valor ser aquém do necessário para atender o volume de situações de vulnerabilidade nas quais o povo atingido se encontra.
“Avaliamos, por exemplo, num cálculo feito a partir de estudos da Fundação Getúlio Vargas (FGV), expert do processo, que o recurso destinado para a área da saúde deveria ser em uma quantia maior que R$ 23 bilhões, o que representa um valor global de quase o dobro do que está indicado que será pago”, informa.
No que se refere ao trecho que aborda os povos indígenas, comunidades quilombolas e povos e comunidades tradicionais, ele acredita que há um grande risco de se estabelecer um desnivelamento na forma da reparação.
“Sem a homologação do acordo, ainda não conseguimos sinalizar quantas e quais comunidades e povos tradicionais serão contempladas. Mas, entendemos que o acordo deveria abarcar todas as comunidades da bacia”, explica.
Manutenção das ATIs
R$ 500 milhões irão para a manutenção de ATIs por mais 48 meses após a assinatura do acordo. Para Thiago Alves, essa é mais uma vitória dos atingidos, uma vez que o MAB defende que as entidades que atuam na bacia do Rio Doce continuem na área.
No entanto, dado que o acordo tem 20 anos para ser cumprido, o militante considera que quatro anos é um tempo desproporcional.
Henrique Lacerda acredita que a ampliação da atuação das ATIs traz um fôlego importante para as comunidades atingidas.
“Acreditamos que essa extensão é fundamental para avançarmos nas demandas apresentadas nos territórios. É importante destacar que o direito à assessoria técnica independente está previsto na Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB), aprovada em dezembro de 2023, e é uma conquista essencial do povo atingido na luta por reparação e justiça”, recorda.
Ana Carolina Fonseca e Marisa Versiani, da Cáritas, reforçam que, enquanto houver dano a ser reparado, pelo período que for necessário, é preciso que as ATIs existam.
“Para que as ações de reparação aconteçam, em cumprimento à legislação brasileira, de modo a viabilizar a participação informada das pessoas e considerando o princípio da centralidade do sofrimento da vítima no processo de reparação integral dos danos”, realça.
Edição: Ana Carolina Vasconcelos