Capitalismo desenvolve apenas tecnologias que favorecem seus interesses econômicos
É muito comum, nas discussões sobre a inteligência artificial (IA), o comentário de que essa é só uma tecnologia, e, como tal, pode ser usada tanto para o bem como para o mal. Visão não propriamente errada, mas incompleta.
No excelente livro "O renascimento de Marx", organizado pelo italiano Marcello Musto e lançado no Brasil ano passado, a filósofa Amy Wendling escreveu um interessante capítulo sobre a visão de Marx a respeito da tecnologia e da ciência.
Ela anota a evolução do pensamento de Marx sobre o assunto. Marx tinha, originalmente, essa visão ingênua e "pré-crítica" (nas palavras dela): "pólvora é pólvora, quer você a use para ferir alguém ou para curar suas feridas", escreveu Marx em 1846 (sim, acreditem! a pólvora, em meados do século XIX, entrava na composição de vários medicamentos).
Segundo Wendling, "essa divisão é pré-crítica porque Marx ainda não havia entendido que o modo capitalista de desenvolver e usar tecnologias irá condicionar quais tecnologias são construídas e usadas".
Desenvolvendo, mais tarde, essa consciência crítica, Marx anotaria, no livro I, de "O Capital", que "o capitalismo não funciona para desenvolver tecnologia em geral; desenvolve apenas os tipos de máquinas que favorecem seus interesses econômicos, sociais e políticos. Chega a inibir o desenvolvimento de tecnologias que não o fazem. Mas o capitalismo também afirma que está desenvolvendo tecnologia em geral, e assim abafa nossa capacidade de imaginar tecnologias não capitalistas".
Ou seja, no capitalismo, a tecnologia será.......capitalista, obviamente!
Essa afirmação aparentemente trivial remete, na verdade, a algo importantíssimo: não existe a tecnologia em si, per si. Ela só existe em determinado ambiente político, econômico e social. Por isso não é neutra, como lembra o historiador norte-americano Melvin Kranzberg.
"A tecnologia não é boa nem má, mas não é neutra", afirma a primeira das seis "leis" da tecnologia enunciadas por Kranzberg.
O contexto, o ambiente político, econômico e social sob o qual a tecnologia é criada insere nela seus propósitos, características e tendências, seu modus operandi.
Em relação à inteligência artificial, portanto, é imprescindível compreender esse ambiente no qual ela vem se desenvolvendo.
"A IA tem donos, nunca podemos esquecer", observou o desembargador aposentado do TRT3, Luiz Eduardo de Resende Chaves Jr. na entrevista que concedeu ao podcast sobre inteligência artificial que fizemos ano passado, para o Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário Federal em Minas Gerais (Sitraemg).
Os dois grandes "players" mundiais da IA, investimento que demanda recursos altíssimos, são as chamadas big techs, mega empresas de origem norte-americana e o Estado chinês. Em ambos os casos o objetivo é a concentração de poder, não o aumento do conhecimento ou do bem-estar geral da população do planeta. Este é o ambiente da IA.
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Não significa, entretanto, que devemos rejeitá-la. Seria impossível, inútil e, pior, trágico.
Marx nunca teve aversão pela tecnologia, e especulava sobre as consequências benéficas do desenvolvimento das forças produtivas para a melhoria física, moral e intelectual da classe trabalhadora - desde que sob contexto político, econômico e social diverso daquele do capitalismo.
Devemos, portanto, compreender novidades tecnológicas como a IA, e procurar utilizá-las para outros fins.
A direção do desenvolvimento da ciência e da técnica não é única, como os "donos" capitalistas que a patrocinam querem nos fazer crer. Essa direção pode, e deve, ser disputada.
A internet, por exemplo, poderia ter se constituído de outra forma, que não a tornasse, como hoje, uma avenida aberta para a desinformação e manipulação ideológica, para o rebaixamento da capacidade crítica e do equilíbrio psicológico das pessoas, para o aumento da desigualdade - tarefa política crucial, hoje, é a regulação democrática da terra sem lei da internet.
Internet socialista de Allende
Vale a pena, nesse sentido, ouvir "Santiago Boys", o podcast de Eugeny Morozov sobre o que ele chamou de "projeto de internet socialista", de Salvador Allende, no Chile dos anos 1970.
A rede Cybersyn, que Allende tentou criar, pretendia transferir informações das empresas chilenas, várias recém estatizadas por seu governo, para uma central de gerenciamento. O horizonte tecnológico da época era dado basicamente pelas comunicações telefônicas e telegráficas, mas a rede Cybersyn pretendia conectar a economia estatal chilena através de uma rede telex, uma espécie de embrião, de versão bem básica da internet. O problema eram as dificuldades de gestão das estatais chilenas, e o objetivo, além da eficiência administrativa, era escapar da dependência tecnológica em relação às grandes empresas estrangeiras - algo ainda plenamente atual.
Além de demonstrar a grandeza e a visão de um homem como Salvador Allende, o podcast realça o quanto é falsa a noção de que, em ciência e tecnologia, "as coisas são assim porque não teria como serem de outro jeito".
Marx, Allende e tantos outros nos mostraram o caminho: devemos rejeitar esse fatalismo, e lutar para modificar o ambiente no qual a ciência e tecnologia, verdadeiros instrumentos de poder, se efetivam.
Rubens Goyatá Campante é doutor em sociologia pela UFMG e pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (CERBRAS)
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Leia outros artigos de Rubens Goyatá Campante em sua coluna no Brasil de Fato MG
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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
Edição: Elis Almeida