Minas Gerais

Coluna

A escola tem que ser neutra?

Imagem de perfil do Colunistaesd
Foto - Reprodução
A escola é uma construção política

Por Cleiton Donizete Corrêa Tereza

Na semana passada estive em um agradável encontro com estudantes de psicologia no campus de uma universidade em Poços de Caldas. A convite da professora de Psicologia Social, realizamos uma roda de conversa sobre o meu livro “Educação é compromisso: reflexões sobre juventudes, educação e políticas públicas”.

Anteriormente, a professora conduziu um trabalho com a turma, dividindo textos do livro para grupos de alunos que, após a leitura, deveriam desenvolver uma comunicação explicativa e criativa. Houve o cuidado em considerar as três partes do livro, compreender, lutar e inspirar, assim, cada grupo leu e apresentou um texto de cada capítulo. Os resultados foram fabulosos! Alguns optaram pela construção de cartazes cheios de imagens, outros por mapas mentais coloridos e bem sistematizados, ainda houve poesias com sensibilidade e assertividade, e até um teatro de fantoches... encantador!

Ter acesso às produções dessa turma a partir da leitura do livro foi animador e reconfortante. Diversos textos que compõem o “Educação é compromisso” foram produzidos diante de situações angustiantes vivenciadas por mim na escola pública, constantemente marcada por divergências internas, carências estruturais, violação de direitos às comunidades, desrespeito aos profissionais, dentre outros. Constatar o potencial das reflexões, tanto pelos trabalhos produzidos, quanto pelas colocações dos estudantes na roda de conversa, fortaleceu ainda mais a continuidade da divulgação do livro e dos princípios contidos em suas páginas.

Durante o encontro, uma das alunas, que antes de acessar o ensino superior, cursou o ensino médio integrado à formação técnica, após conseguir uma disputada vaga no Instituto Federal do Sul Minas (IFSuldeMinas), relatou dificuldades vivenciadas na escola pública no ensino fundamental. Ausência de professores, vazamentos dentro da sala em dias de chuva e pintura degradada foram alguns dos problemas apontados.

:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui :: 

Além desses elementos estruturais mínimos comprometidos, a jovem compartilhou também sobre a postura político-pedagógica da equipe escolar, silenciando diálogos que envolvessem questões políticas. Entretanto, era comum, em certos momentos, que educadores emitissem opiniões conservadoras, como a professora que proclamava sua aversão ao feminismo.

Existiram, de acordo como seu relato, poucos momentos de exceção. Um deles se deu quando um professor de história questionou a turma, dizendo: quem gosta de política? Após receber muitas negativas de retorno, o professor deu uma aula marcante, da qual a aluna se lembra bem, explicando do que se trata a política e como é necessário considerar essa dimensão. Esse educador não permaneceu por muito tempo na escola. Ela afirmou que o discurso corrente era que a escola tinha que ser neutra em relação aos debates políticos. Ou seja, política não era algo para sala de aula.

Trabalho pedagógico emancipador

Será isso mesmo? A escola deve ser neutra? Portanto, debates políticos, envolvendo partidos, eleições ou outros temas que aguçam posições divergentes sobre a compreensão e os rumos da sociedade e suas instituições, não devem fazer parte do cotidiano escolar? A resposta, sem fazer círculos, é não. Esse tipo de colocação parte da premissa de que a escola, ao permitir e/ou fomentar interlocuções desse tipo, terminaria influenciando os estudantes e deixando o ambiente mais conflitivo, porém, são afirmações falsas.

Primeiro porque as crianças e jovens são expostos a inúmeras influências o tempo todo, nem por isso são colocados em um quarto escuro, sob a premissa da proteção. Todos nós construímos nossas personalidades, nossos valores, nossa posição política mediante a relação com o mundo.

Não se trata, evidentemente, da escola incutir uma ou outra posição política, aliás, quem tem feito esse papel lesivo, blasfemando contra a liberdade, são principalmente os extremistas cristãos, as confrarias reacionárias e as instituições e fundações privadas, que tratam a educação como mercadoria e constituem um secto fundamentalista neoliberal. Eu tenho enormes dificuldades em dizer que estabelecimentos de ensino ligados a esses grupos consistem em escolas, tampouco que desenvolvem educação.

Segundo porque a escola, especialmente a escola moderna, é uma construção política, no sentido de que é resultante especialmente dos debates, necessidades e reivindicações iluministas no contexto das revoluções burguesas e também das reivindicações proletárias de acesso a direitos, inclusive para fortalecer as lutas por igualdade.

Quem insiste na suposta neutralidade da escola, seja de maneira consciente, como plataforma política da extrema-direita, seja de tipo reprodutivo, sem analisar exatamente o que diz, está contribuindo para tentar manter os estudantes numa condição de coerção. E, esse autoritarismo sim, é péssimo para o convívio escolar e social, de forma geral, porque teremos a expansão das fascistização social caracterizada pela incapacidade da escuta, do diálogo e da compreensão da importância da contraposição e da crítica científica.

Aliás, cabe lembrar que o pretenso discurso, com ares de superioridade, insistente em afirmar que não existe mais direita, nem esquerda, que são termos ultrapassados, etc., ou seja, outro pretenso molde de neutralidade, está desconsiderando as pesquisas no campo das Ciências Humanas (História, Sociologia, Ciência Política...) e, portanto, incorporando um negacionismo científico. Entretanto, aprofundar essa questão é conteúdo para outro momento.

Todos nós construímos nossa posição política mediante a relação com o mundo

Ao invés de tentarmos tapar a boca de estudantes e educadores, por meio do ideológico discurso da neutralidade - este sim, ideológico por excelência porque produzido no interior de relações sociais em condições concretas de opressão - deveríamos nos dedicar ao trabalho pedagógico emancipador.

Laval e Vergne, no livro Educação democrática: a revolução iminente, desenvolvem o conceito de pedagogia instituinte, que considero revigorante para o debate: “essas disputas (métodos inovadores x pedagogia tradicional, desenvolvimento x transmissão de saberes) encerram hoje seus autores em um escolarismo que mascara a função real da escola, elas impedem a reflexão sobre o que deveria ser uma escola realmente democrática. É preciso deslocar a questão para sair de um debate estéril. Qual pedagogia poderia melhor atender às necessidades humanas de uma sociedade democrática e ecológica? (...) Pedagogia instituinte, denotando por isso o conjunto das pedagogias que fazem da democracia um princípio de funcionamento da instituição escolar e da formação dos alunos”, afirmam.

Os autores, Laval e Vergne, ainda esclarecem e alertam: “Por atividade ou prática instituinte, denota-se a efetiva implementação do poder de criar e modificar coletivamente as instituições. A autonomia não pode ser confundida com livre capricho, com negação dos conhecimentos racionais e dos fatos estabelecidos, ou com autoconstrução de saberes. A educação democrática visa formar cidadãos capazes de pensar, julgar, decidir e agir a partir de um ponto de vista racional (...) Se a escola fosse apenas um instituído, se tudo fosse estabelecido até os mínimos detalhes regulamentares, os alunos, assim, como os professores, seriam privados de qualquer margem de ação e de qualquer desejo de interferir em assuntos coletivos”.

A escola, e a universidade, que têm a educação como compromisso, da forma como desenvolvi no livro e dialogamos no encontro, não pode ser neutra, e, mais que isso, não deve ser neutra. A construção processual, e sempre inacabada, da democracia, necessária para uma realidade de justiça social e liberdade, exige uma educação reflexiva e ativa constante, que o tempo todo seja capaz de considerar os construtos históricos, os desafios do momento presente e a permanente reinvenção responsável visando o futuro.

Cleiton Donizete Corrêa Tereza é professor Doutor do Departamento de Educação, Informação e Comunicação (DEDIC) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da Universidade de São Paulo (USP). Foi professor de História nas redes municipal de Poços de Caldas e estadual de Minas Gerais por quase duas décadas. É especialista em História Contemporânea (PUC Minas), especialista em Planejamento, Implementação e Gestão de Educação a Distância (UFF), mestre e doutor em Ciências Humanas (Diversitas-FFLCH-USP). Tem atuado em órgãos e movimentos sociais em defesa da educação pública, democrática e de qualidade.

----

Leia outros artigos sobre educação e literatura na coluna Cidades das letras: Literatura e Educação no Brasil de Fato MG

--

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Elis Almeida