Até a década de 1990, a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) contava com a circulação de pelo menos dois trens diários de passageiros, que ligavam os diversos municípios. Porém, com a concessão da linha férrea, a alternativa ao transporte público, que era o principal modal utilizado pela população até o fim dos anos 1970, foi interrompida. Atualmente, a linha férrea faz parte da Ferrovia Centro-Atlântica (FCA), administrada pela concessionária VLI Multimodal S. A., uma holding que tem como sócios as empresas Brookfield, Vale, Mitsui, FI-FGTS e BNDESPar.
Recentemente, um movimento pela volta do trem de passageiros tem organizado mobilizações, a fim de pressionar o poder público para não antecipar a renovação da concessão da VLI, uma vez que ela descumpriu o contrato durante todo o seu período de funcionamento, segundo os membros do grupo. Os 30 anos de contrato terminam em 2026. É o que explica Cristina Oliveira, uma das fundadoras do movimento e moradora de Contagem.
“A VLI deixou de cumprir várias cláusulas, entre elas o par de trens diários, que deveriam estar funcionando há 30 anos. A empresa não poderia ter impedido a circulação do trem de passageiros, mas fez isso. Entendemos que um mau prestador de serviço não pode ter o privilégio de renovação antecipada da concessão”, afirma.
Para ela, o momento de renovação do contrato é crucial para conseguir uma resposta à demanda popular.
“Se não conseguirmos isso agora, essa janela pode só aparecer novamente daqui a 30 anos. Se for para fazer uma nova concessão, que haja concorrência, porque outras empresas podem prestar um serviço de melhor qualidade”, ressalta.
Visão com a qual também corrobora André Tenuta, diretor da ONG Trem. Para ele, a empresa não vem cumprindo o contrato desde a década de 1990.
“Um dos itens mais importantes que ela descumpriu descaradamente, apesar de toda a pressão da sociedade, sempre com o aval da ANTT, dos governos estaduais e federais, é a cláusula que impunha a manutenção de tudo na condição em que recebeu. Na realidade, mais de 4 mil km de linha não estão em condições de funcionar. Ela foi abandonando a estrutura aos poucos, deixando ser depredado, não dando a manutenção adequada e, o que é pior, não deixando ninguém usar ", denuncia.
O movimento
O movimento tem realizado diversas ações, entre elas o lançamento de um manifesto digital intitulado “Manifesto pela Volta do Trem na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH)”. O documento indica que a retomada do serviço atenderia “pelo menos 20 cidades da RMBH”.
“Além de outras grandes cidades do interior, como Divinópolis, Pará de Minas, Sete Lagoas, Itabira, João Monlevade, Ouro Preto e Conselheiro Lafaiete. A volta do trem permitirá a interligação entre a região central do estado e outros importantes pólos e cidades de Minas Gerais”, explica o texto.
O manifesto destaca ainda que Belo Horizonte tem uma malha ferroviária que supera a soma dos trilhos disponíveis nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Para Gustavo Gazzinelli, ambientalista e jornalista integrante do Instituto Diadorim para o Desenvolvimento Regional e Socioambiental, o trem metropolitano e os trens de passageiros intermunicipais podem contribuir para um novo planejamento do desenvolvimento regional, tendo também importância para a melhoria da mobilidade urbana.
“É possível tornar a mobilidade mais eficiente, rápida e confortável, e reduzir a demanda por meios de transporte individual e baseados em combustíveis fósseis”, afirma.
Gustavo ressalta ainda que o movimento tem como meta a ativação dos traçados de Trem Metropolitano e Metrô, já propostos nas primeiras páginas do volume II do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da RMBH (PDDI-RMBH), que tem como proposição aproveitar as linhas existentes, ativas e inativas.
“Com as adequações necessárias, teremos um trem de passageiros moderno atendendo rotineiramente a nossa população”, pontua.
Reivindicação
Como parte da reivindicação pela volta do trem, o grupo tem se organizado em torno de duas pautas principais: que a renovação da concessão não seja antecipada e aconteça baseada na concorrência; e a garantia do trem de passageiros, para além dos dois trens diários, como alternativa para o transporte coletivo da região.
“Enquanto não tivermos um transporte alternativo para a população, teremos cada vez mais carros circulando e, consequentemente, mais engarrafamentos e acidentes, porque as pessoas não têm outra opção de mobilidade, a não ser o transporte sobre rodas”, defende Cristina Oliveira.
Embora o movimento seja recente, tem aglutinado muitas pessoas em torno da causa. O grupo, já realizou o envio de propostas para a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), uma ação nas redes sociais de mobilização, e o manifesto virtual conta com a assinatura de mais de 100 entidades. Além disso, um manifesto físico tem sido circulado pelo grupo, a fim de não restringir a ação à mobilização digital.
O histórico do trem
A história do transporte ferroviário se confunde com a própria história de Belo Horizonte, é o que explica André Tenuta da ONG Trem.
“O transporte ferroviário em Belo Horizonte existe desde a construção da cidade. Na verdade, a cidade foi construída neste lugar justamente porque havia a possibilidade de um pequeno ramal da linha que já chegava até Sabará, possibilitando trazer material de construção e pessoas. Então, Belo Horizonte nasceu em função da proximidade da ferrovia que vinha do Rio de Janeiro e chegava a Sabará”, relembra.
Ele pontua que o transporte funcionou muito bem para a população por décadas, ligando todas as cidades em torno de BH pelo acesso ao trem.
“Muitas delas, inclusive, nasceram ao longo da linha do trem, tanto que, na época em que o trem acaba, não existem rodovias adequadas para o tamanho do fluxo”, explica.
Porém, durante as décadas de 1980 e 1990, com o processo de sucateamento do modal, o transporte de passageiros passou a ficar cada vez mais inviável. André recorda que, à época, a ferrovia era comumente utilizada como palanque político, o que gerou passagens com valor abaixo do necessário para a manutenção da linha.
Uso restrito
Para André Tenuta, as concessionárias que assumiram o modal ferroviário o fizeram somente pelo interesse na continuidade do transporte de suas cargas, com o tempo, passando a rejeitar cargas de outras empresas e passageiros.
“Hoje, pouquíssimas outras cargas entram no transporte ferroviário, ou seja, se tornou um negócio entre compadres, sendo que a ferrovia é praticamente voltada ao transporte de commodities para a exportação”, afirma.
Para ele, a renovação da concessão seria um desastre para a população.
“O acesso de trens de passageiros às linhas é sempre muito dificultado, eles criam todo tipo de empecilho, embora, pelo contrato, sejam obrigadas a liberar a circulação de trens de passageiros”, finaliza.
Como participar?
Para se envolver com essa causa, é possível acompanhá-la pelas redes sociais clicando neste link.
Para ler o manifesto na íntegra, basta clicar aqui.
O outro lado
O Brasil de Fato MG entrou em contato com a VLI para que a empresa opinasse sobre as denúncias de descumprimento de contrato e ineficiência na prestação de serviços. Como resposta, a empresa afirmou que "a concessão da FCA é exclusiva para transporte de carga".
Edição: Ana Carolina Vasconcelos