Produção do professor Luciano aponta desafios da educação na última década
Por Libéria Neves
Atribui-se a Millôr Fernandes a afirmação de que “todo homem nasce original e morre plágio”. De fato, esse costuma ser o destino de muitos. É muito fácil sermos engolidos pela exigência de seguirmos modelos prontos para alcançar um molde aceitável e previsível. A originalidade demanda coragem, persistência e resistência; um exercício muitas vezes hercúleo de remar contra a correnteza do status quo, do padrão de pensamentos, movimentos, sentimentos, comportamentos.
Viver nesse esforço parece ser a lógica do desejo do artista e do cientista – sujeitos inquietos, inconformados, impulsionados pela invenção, ou seja, por um modo singular de interrogar o seu tempo, apontando as incongruências no combate à tendência à repetição (gozo maior dos sistemas sociais estruturados em classes constituídas na lógica opressor-oprimido).
Assim, mesmo artistas que passam a vida ensaiando a simplicidade do próprio traço, buscando o movimento “descadenciado” ou o verso mínimo, encontram-se num irrepreensível estado de invenção. Da mesma forma, cientistas que dedicam sua existência a colher amostras das camadas geológicas mais profundas ou a encontrar mais uma estrela no infinito, se mostram movidos pelo inédito possível.
Este parece ser o caso de Millôr, quem, pelo que consta, desde pequeno, já desenhava o que se tornou um desenho cada vez mais cênico e cínico, convergindo em prosa, dramaturgia e poesia, cujo traço permanente é o humor. Culminando num modo de criticar a realidade, por meio da ironia poética, fazendo marca, inaugurando um estilo muito próprio de inventar perseguindo o mesmo objetivo.
Luciano Mendes de Faria Filho
Do mesmo modo, podemos considerar o percurso do cientista da Educação professor Luciano Mendes de Faria Filho. Que há mais de 30 anos investiga e produz no campo da História da Educação, na perspectiva de compreender as raízes da nossa atualidade, interpelá-la e apontar as (im)possibilidades dos futuros.
O professor Luciano acumula uma produção acadêmica que alcança algumas centenas de títulos, entre artigos, livros, capítulos de livros, textos em jornais, publicações e conferências em Congressos, entre outros.
Com destaque para a organização do livro-marco 500 anos de Educação no Brasil que, na visão de Demerval Saviani, “expressa o significativo desenvolvimento da historiografia atual da educação brasileira ao mesmo tempo em que dá ao conhecimento do público alguns dos importantes resultados já obtidos”. Obra que parece ratificar seu projeto de seguir pensando o Brasil, a partir da Educação (do passado, do presente e do futuro), ou mesmo de pensar a Educação a partir do(s) projeto(s) de Brasil.
A produção do professor Luciano deixa um rastro coerente e consistente de uma investigação em rede (articulada a instituições de diversos cantos do país e fora dele), a qual nos permite visualizar uma trajetória científica, mas também a trajetória da organização política do país, a qual sempre se faz articulada aos projetos de Educação.
Coragem, persistência e resistência
Uma amostra disso está presente nos livros recém publicados Organização do trabalho escolar e formação de professores em Minas Gerais-1900/1920 e Luciano Mendes de Faria Filho e a Educação: um Pensador Engajado, ambos pela Editora Escola Cidadã e com organização de Maria Lúcia de Resende Lomba. Este último, traz um recorte de 2013 a 2023 a partir de textos escolhidos pelo autor, publicados em periódicos científicos de excelência, em espaços de divulgação científica ou mesmo resultantes de conferências realizadas em eventos acadêmicos.
Na década retratada pelo professor Luciano, testemunhamos acontecimentos inesperados. A começar pelas manifestações de junho de 2013, que se transformaram numa mobilização progressiva envolvendo múltiplas pautas motivadas pelos protestos contra o aumento de 20 centavos nas passagens dos transportes coletivos em SP. Em pouco tempo, as ruas de diversas cidades, em todos os estados, estavam diariamente tomadas por manifestantes portando bandeiras referentes à saúde, à educação, à falta de representatividade política, à corrupção, à PEC 37, culminando no surgimento de novas lideranças e no aumento da potência das redes sociais na articulação e organização dos movimentos a partir de então.
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Essa potência se mostrou atualizada nos “rolezinhos” articulados por adolescentes das periferias urbanas em várias partes do país, no início de 2014. Mas também nas fake news que fomentaram a opinião pública em relação ao golpe de 2016; nas eleições de 2018; na pandemia da covid-19, a partir de 2019; nas eleições de 2022; no atentado de oito de janeiro de 2023; entre outros acontecimentos.
Testemunhamos um salto na democratização do acesso aos meios digitais de comunicação, ao mesmo tempo em que passamos a viver imersos no fenômeno da “infodemia” – um excesso de informações associadas a um assunto específico, que podem se multiplicar exponencialmente em pouco tempo. Incorrendo também em rumores e desinformação, além da manipulação de informações com intenção duvidosa, como propõem Leita Garcia e Elisete Duarte.
Podemos dizer que a infodemia interferiu (e vem interferindo) no trabalho da ciência nesse período, assim como ameaçou (e ainda vem ameaçando) a estabilidade das instituições que buscam garantir a vida coletiva calcada em direitos e deveres. São demonstrações da dimensão dos efeitos da viralização da desinformação, os ataques à democracia, ao Supremo Tribunal Federal (STF), os movimentos a favor da intervenção militar, bem como os ataques às universidades, às escolas, à educação.
Em meio a esse contexto, a produção do professor Luciano, especialmente a registrada no livro Luciano Mendes de Faria Filho e a Educação: um Pensador Engajado, traz um rastro dos desafios da produção científica no campo da Educação, referente à última década, na medida em que aborda a pesquisa em Educação, a pós-graduação, a Educação Básica, as políticas educacionais, os sentidos da Educação em tempos sombrios, oferecendo-nos elementos para interpretar o Brasil. Culminando num compromisso com a memória e com a divulgação científica.
Desse modo, estamos diante de um registro referente a um campo e a um tempo. De um ato de coragem, persistência e resistência, o qual demonstra a inquietude do autor, motivado pelo inconformismo e impulsionado pela invenção; qual seja, de retomar sua produção, nesse recorte, fazendo dela uma nova produção – engajada e original.
Libéria Neves é doutora em Educação, professora da Faculdade de Educação (FaE) da UFMG, onde atua no Programa de pós-graduação Mestrado Profissional Educação e Docência (PROMESTRE) e Coordena o Programa de Ensino, Pesquisa e Extensão Pensar a Educação.
*Texto publicado como Posfácio ao livro Luciano Mendes de Faria Filho e a Educação: um Pensador Engajado (Editora Escola Cidadã, 2024)
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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.
Edição: Elis Almeida