Aos medos reais, a indústria da fé e do medo agregaram os medos imaginários
Por Luciano Mendes
Nestes últimos dias, tenho me lembrado da frase do Collor segundo a qual seu plano iria deixar a “direita indignada e a esquerda perplexa”. E isto não apenas porque o dito cujo voltou ao noticiário em razão de seu julgamento no Supremo, mas também, e sobretudo, porque a impressão é que as esquerdas estão, nas últimas décadas, cada vez mais perplexas.
Acompanhando em alguns grupos de discussão e nas redes sociais, a impressão que se tem é que, em todos os quadrantes do Brasil, as esquerdas estão se mobilizando para tentar entender o momento em que estamos vivendo, no que tem sido uma de suas mais salutares tradições, é bom que se diga. No entanto, o clima, de um modo geral, é de grande perplexidade, não apenas pelo retorno de Trump à presidência dos EUA, mas, sobretudo, com os resultados das últimas eleições – a partir de 2018 – no Brasil.
Não vou, aqui, fazer um resumo do estado da questão, inclusive porque não tenho elementos nem competência para tal. Mas, a partir das minhas experiências e pensando com o pensamento de outros, vou trazer a hipótese de que parte da perplexidade das esquerdas está no fato de que elas ainda acreditam em demasia na racionalidade iluminista e nos conhecimentos racionais e tendem a achar que as ações políticas decorrem de decisões razoáveis. Aqui, gostaria de contar um caso verídico.
Contradição
Tenho em meu convívio familiar, o mais esporadicamente possível, uma pessoa que nasceu pobre, de começar a trabalhar muito cedo na vida, que participava de movimentos coletivos, que hoje, casada e com os filhos “criados”, leva uma vida de classe média baixa.
Outro dia, esta pessoa relatava, indignada, uma situação em que seu marido, dirigindo o carro, tentava passar por uma rua que estava tomada de gente e foi insultado por um dos transeuntes, que, veementemente, o mandava “dar ré”. A pessoa contava o caso e perguntava: “onde foi parar a humanidade desta gente”? Pois bem, esta mesma pessoa cuida de seus pais quando necessário, cuida da prole ao longo da vida, sempre muito carinhosamente, é visceralmente católica e bolsonarista de fazer campanha, atuar nas redes sociais e participar de comício. Para ela, a despeito de todos os indicadores dizerem o contrário, o Lula está acabando com o Brasil; e aguarda ansiosa a volta do Messias.
Pois bem, diante de pessoas assim, nos perguntaríamos como pode a pessoa se indignar com a “falta de humanidade” de um transeunte que xinga e não se sente constrangida em se juntar a Bolsonaro, uma síntese de quase tudo o que de pior produziu esta mesma humanidade?
Historicamente a nossa explicação poderia ser a de que esta pessoa não adquiriu consciência (de classe e outras) ou que não possui conhecimentos suficientes para entender que o Brasil tem, sim, melhorado após a saída de Bolsonaro do poder, ou que é uma alienada, ou coisa do tipo. Talvez, a isso se juntassem argumentos como o de que a escola que ela frequentou não ofereceu a ela uma digna formação para a cidadania, por meio de conhecimentos críticos e relações democráticas.
O problema desta explicação é que cada vez mais, no mundo todo, as direitas antidemocráticas e violentas estão convencendo as pessoas, com alta ou baixa escolaridade, que elas, as direitas, são melhores do que as esquerdas para enfrentar os desafios que estas mesmas pessoas estão passando.
Ora, diante de um mundo que lhes parece cada vez mais hostil, o que têm feito estas pessoas? Não têm recorrido aos conhecimentos, às instituições científicas ou credenciadas pela sociedade, ou mesmo pelos Estados, para buscar entender e atuar neste mundo. Têm buscado muito mais em suas paixões do que em suas razões, muito mais em suas memórias do que nos conhecimentos históricos, muito mais nas religiões do que nas ciências, os guias práticos para a vida cotidiana, inclusive na política.
Mas, pergunto, em algum momento da história foi diferente disso?
Um dos problemas das análises, e das propostas políticas das esquerdas, é que, de um modo geral, elas continuam tendo uma concepção muito racional e racionalizante da ação política e não conseguem mobilizar os conhecimentos e instrumentos disponíveis das artes, da psicanálise, da neurociência e ou, mesmo, dos povos ancestrais.
Penso que estas podem trazer contribuições importantes, como algumas pessoas têm demonstrado, para entender o que se passa com as pessoas para que, mesmo sabendo que serão as mais prejudicadas pelas políticas da extrema direita, escolhem-nas ao invés daquelas que apresentamos e que nos parecem muito mais razoáveis.
Claro que não estou advogando que não mobilizemos as ciências mais “clássicas” como a sociologia e a história, ou mesmo a estatística, para entendermos o que está ocorrendo. Mas elas, definitivamente, não dão conta, como nunca deram, sozinhas, do entendimento do real que se nos apresenta.
Ainda não damos conta de lidar com o fato de que a pulsão de morte e a convocação ou autorização da violência, inclusive contra si mesmo, não são fatores irracionais ou características das “pessoas do mal”. Talvez, muito mais do que isto, sejam sintomas de pessoas e de uma sociedade traumatizadas pela contínua violência de todo tipo.
Do mesmo modo, ainda soa estranha para boa parte de nós a ideia de que a busca por reconhecimento – real ou ilusório e das mais variadas formas – é um elemento central na e para a agência humana, incluindo na política. Um dos sintomas disso é, por exemplo, como já expus em outros momentos, a crença exacerbada de que o que nos falta são boas escolas, bons professores, bons currículos para transmitir conhecimentos críticos que, por sua vez, capacitarão as pessoas a não votarem no fascismo.
Violência e medo
Numa sociedade como a brasileira, em que a forma educativa mais clássica, contundente, permanente e atual para lidar com as camadas populares tem sido a violência, não deveria ser estranho que o medo campeia, estrutura subjetividades e dirige a ação cotidiana, inclusive na política.
Não é apenas o medo do inferno, do purgatório ou de um deus vingativo e violento. É o medo do pai, do tio, do avô, do coronel, da polícia, do padre, do vereador, do fazendeiro, do filho do fazendeiro, do patrão, do desemprego, da fome, do bandido, da falta da casa, da comida, da assistência...
Aos medos reais, a indústria da fé e do medo, juntas ou separadas, articuladas transnacionalmente e com ramificações em todos os setores da vida social, vieram potencializar, para obtenção de lucro, os medos imaginários. E, de outro lado, as formas de reconhecimento ilusoriamente comercializadas pelas plataformas de comunicação ávidas por sempre maior lucratividade.
Tudo isso, ainda que mantenha, quanto possível, relações com fatos e condições objetivas, extrapola esta objetividade e mobiliza os nossos mais recônditos e tradicionais medos, horrores e desejos.
:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::
Não é razoável exigir de pessoas que estão, literal e metaforicamente, morrendo de medo, que façam análise, tomem posições ou decisões razoáveis.
Não é razoável, também, que pessoas que sempre foram esquecidas pelas instituições e poderes, e mesmo em suas comunidades, que as deviam reconhecer e acolher, que não caiam no conto do vigário das empresas e personalidades que lhes prometem responder às suas inseguranças e desejos de reconhecimento e bem-estar.
A crença religiosa, ou crença na vinda de um salvador, seja lá qual for, que nada tem de razoável, sempre foi uma saída crível para as pessoas e, hoje, mais do que nunca, tem sido buscada por mais e mais gente para dar conta dos absurdos, do sem sentido da vida.
Por isso, não é razoável, também, imaginar que o enfrentamento das consequências culturais, sociais, políticas e econômicas, para ficar nestas poucas, da violência e do medo, passe fundamentalmente pela racionalidade educada. Exige muito mais do que isto e é disto que temos fugido sistematicamente.
Diante dos resultados das eleições e do negacionismo científico, não foram poucas as pessoas e instituições, dirigidas por pessoas de esquerda ou centro esquerda, que bradaram por programas de “mais ciências na escola”. Ora, “não se sai de árvore por meios de árvore”, para lembrar o feliz título do livro de Paula Vaz. E, por outro lado, não sendo possível, nem razoável, colocar todo mundo no divã para elaborar seus medos muitos, como fazer?
Saídas
Uma primeira saída, historicamente construída pelos oprimidos de todos os quadrantes, é o fortalecimento dos coletivos que ajudem a elaborar e enfrentar a violência e o medo.
É esta, por exemplo, a meu ver, a principal pedagogia do mais importante movimento social de esquerda na América Latina: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Não são as “escolinhas” do MST que assustam a burguesia do campo e da cidade, a bancada BBB e outras. O que esses grupos temem é a função produtiva, cultural e pedagógica do movimento em construir coletivos que possibilitam, ainda que sob grande violência, enfrentamento do medo por meio do encontro e do agir coletivos.
Claro, a escola, que é a mais capilar e inclusiva das instituições públicas – e que conta com profissionais que também enfrentam a violência e o medo cotidianamente – tem um papel importante neste enfrentamento. Mas não porque, ou fundamentalmente, ensina ciências e a linguagem do dominante, mas porque tem o potencial de constituir coletivos que, cotidianamente, podem ajudar a enfrentar a violência e o medo que marcam nossas crianças e nossa juventude.
Nesta perspectiva, mais do que “mais ciências na escola” ou “projetos para elevar a nota do IDEB ou no PISA”, precisamos de “programas de mais artes na escola”, “mais meninas na política”, mais tempo para as pessoas que trabalham na escola dialogarem entre si, com as famílias e com os coletivos que circundam a escola. Mas isto não basta.
Palavrear e representar o horror, o medo, a violência e o que elas fazem conosco, sem que disso muitas vezes tenhamos consciência, é a forma mais contundente de a escola colaborar para o enfrentamento desde mesmo horror, da violência e do medo em nossa vida cotidiana e, por conseguinte, na política. Daí a necessidade da dança, das artes plásticas, do cinema, do teatro, da literatura... na escola, não apenas como espaço e tempo de transmissão de conhecimento “sobre”, mas de prática artístico-cultural individual e coletiva.
E ao invés de empreendedorismo, preparação para o IDEB e PISA e incentivo ao mérito individual, que muita coisa têm em comum, trabalhos coletivos, trabalhos socioculturais produtivos (não digo rentáveis), rodas de conversa, oficinas de cooperação e integração. Ah! E nenhuma utopia deste tipo pode abrir mão em sonhar com professionais da educação, com os confortos que lhe são devidos, que acolham com integridade e responsabilidade às novas gerações que lhes chegam na escola.
O que foi dito acima são as partes, infelizmente, mais fáceis de serem realizadas. Isto porque o enfrentamento do medo e da violência e, por meio deste, o enfrentamento da ascensão do fascismo entre nós, implica a articulação de um projeto mais amplo e a tomada de posições muito mais firmes do Estado brasileiro e das forças democráticas no combate à principal violência que nos cerca: a desigualdade de acesso aos bens materiais e simbólicos que garantam uma vida digna para todas as pessoas.
Ora, é justo aí que a porca torce o rabo: histórica e cotidianamente a violência e o medo têm sido mobilizados justamente para a garantia de que estas desigualdades se perpetuem e que a taxa de lucro dos investimentos capitalistas aumente a cada dia, a despeito da destruição da vida de todas as populações que habitam este território.
Aí, então, o que fazer?
Luciano Mendes de Faria Filho é pedagogo, doutor em Educação e professor titular da UFMG. Publicou, dentre outros, “Uma brasiliana para a América Hispânica – a editora Fondo de Cultura Econômica e a intelectualidade brasileira” (Paco Editorial, 2021)
---
Leia outros artigos da coluna Cidade das Letras no Brasil de Fato MG
---
Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida