O que move a pedagogia é a coragem que temos quando educamos
Por Trinidad Vaccarezza
Alguns dias atrás, estava lendo o livro Capitalismo del yo. Ciudades sin deseo da psicoanalista chilena Constanza Michelson em que ela, a propósito da explosão de manifestações sociais de 2019, no Chile, escreveu que esse evento "irrompeu um desejo de transformação e a questão que preocupa é a de qualquer revolução: o que será feito do desejo depois da revolta? Libertação não é o mesmo que liberdade. A libertação de algo não garante a liberdade do depois; pode sempre ser criado um novo poder para oprimir".
Quase um ano após a posse de Javier Milei como presidente da Argentina, estão vivas em mim estas palavras que sublinhei com caneta no livro citado acima. Vou com elas, também, à faculdade, ao trabalho que desenvolvemos todos os dias na universidade pública, e deparo-me com a inscrição, cuja foto acompanha este texto, no chão de um dos corredores da Faculdade de Educação da UFMG. "As forças do chão", penso imediatamente, e tiro a fotografia.
Lembro-me, a propósito disso, que Javier Milei gosta de dizer, em todos os seus discursos e falas públicas, que ele, junto das “forças do céu”, chegaram para liberar a Argentina.
Permito-me brincar um pouco com o que essa associação abriu: o que implica fazer Pedagogia, assim, em maiúscula escritas no chão de uma Faculdade de Educação? Quais são as suas forças? E mais: qual é a função do chão para além de - para os que estão em cima - os obrigar a olhar para baixo?
Quando Freud, lá em 1937, na sua célebre frase, diz que educar é uma das profissões impossíveis "em que a insuficiência do resultado pode ser tomada como certa de antemão", imagino que, embora ele situe a tarefa de educar como uma profissão, na verdade ele se refere a qualquer ato em que medeia entre aqueles que participam, necessariamente pelo menos dois sujeitos, algum tipo de pedagogia.
Interessa-me sublinhar, como Freud, que a intencionalidade educativa presente nessa ação, não se traduzirá inevitavelmente em aprendizagem. Pelo menos, nem sempre a que é esperada ou procurada. Usualmente, será, como ele diz – e como nos dizem na escola quando não conseguimos aprovar a disciplina no final do período – "insuficiente".
Isto parece-me pertinente. Não para defender uma posição pedagógica que procumbe diante da noção de “incerteza” e a entende como vetor do ato de educar, insistindo no lugar do acontecimento como uma situação quase mágica que tem de acontecer para que a aprendizagem se realize.
Muitas vezes, as crianças e as pessoas adultas aprendemos coisas úteis pela simples repetição. Penso que, em parte, o que Freud pretendia era sublinhar que nem tudo, e nem sempre qualquer coisa é “pedagogizável”. Porque se tudo pode ser ensinado, nada pode ser ensinado. Em certos aspectos e em certos momentos da vida, e isto vale tanto para as pedagogias informadas na neurociência, na educação emocional, no coaching, na autoajuda (tudo o que a atual Secretaria da Educação argentina adora), quanto para as pedagogias mais tradicionais e críticas: todas elas, em algum momento, reprovam.
Qualquer pedagogia é insuficiente. Por muito ambicioso que seja o seu discurso e por muito abrangentes que pareçam ser as suas práticas. Nenhuma pedagogia consegue atingir plenamente os seus objetivos, sejam eles explícitos ou implícitos. E isto porque, seguindo a pista de Freud, a função da pedagogia não é essa.
Se a pedagogia tem alguma força, é o seu lugar como ciência situada no entremeio. Quando a estudamos na universidade, temos a sensação de que a discussão sobre esta particularidade se mantém ao longo de todo o percurso formativo como uma espécie de tensão. Por vezes, esta qualidade faz da pedagogia um campo muito fértil, promissor e relevante para as ciências sociais e humanas, e outras vezes a torna débil, fragmentada ou tomada por outras disciplinas.
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A pedagogia é uma ciência que se move no entremeio porque emerge da prática e é nutrida e retroalimentada pela teoria. Está entre as forças do chão e do céu, poderíamos dizer. E se assim for, fazer pedagogia ou intervir pedagogicamente significaria pelo menos duas coisas: sustentar e mover.
Amor e coragem
A pedagogia sustenta porque fornece um enquadramento e introduz uma pausa. Coloca uma distância essencial entre o ato e aqueles que o realizam, entre a ação e aqueles a quem ela se dirige. Por isso Paulo Freire dizia no seu livro Pedagogia da Autonomia que educar é um ato de amor, porque, em outro registo, amar é sustentar, ou sustentar é amar.
Não estou dizendo que a pedagogia é equivalente ao amor. Como acontece na vida, o amor é essa força que protege, que sustenta quando os véus se rasgam, quando a verdade crua emerge. A pedagogia é a força que insiste em que há um caminho que vale a pena. A pedagogia é um caminho e é a diversidade de caminhos.
A segunda parte da frase de Freire, porém, fala de outra coisa: ele diz que educar é um ato de amor e, portanto, um ato de coragem. Coragem.
A pedagogia não pode ser apenas a sustentação de uma cena, porque a cena é um recorte e, por mais acabada que pareça, há sempre mais. Há sempre uma parte que não é vista, algo que é deixado de fora (para tirar uma fotografia ou escrever um relatório). É também por aí que passa a pedagogia. E, por isso, a pedagogia é movimento, porque se fosse sempre bem-sucedida, então, por que ainda precisaríamos dela?
O que Freire nos diz é que o que move a pedagogia não é a ânsia pelo resultado, mas a coragem que temos quando educamos porque o ato de educar é uma aposta e, para isso, temos de ter a coragem de enxergar, a cada vez, o além.
Volto à questão de Constanza Michelson. "Irrompeu um desejo de transformação e a questão que nos preocupa é a de qualquer revolução: o que será do desejo depois da revolta? Libertação não é o mesmo que liberdade. A libertação de algo não garante a liberdade do depois, um novo poder pode sempre erguer-se para oprimir".
Lembro-me agora de uma breve troca de palavras que tive com uma pessoa no Instagram que, depois de Milei ter ganho as eleições, me enviou uma mensagem dizendo: "é incompreensível que as pessoas tenham engolido a dialética libertária. Temos de transformar a cabeça dos jovens". Eu diria, menos ambiciosamente: é preciso andar pelo chão, compreender o cenário da revolta e tentar enxergar os desvios porque a pedagogia, esse entremeio, essa coisa entre o mover e o sustentar, entre o desejo e o amor, pode ser que se pareça um pouco com a liberdade.
Trinidad Vaccarezza é pedagoga pela Universidad de Buenos Aires, Argentina, e doutoranda em Educação na Universidade Federal de Minas Gerais. Integra o Grupo de Pesquisa em Educação de Jovens e Adultos (GRUPEJA) e o Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente (GESTRADO), ambos da Faculdade de Educação/UFMG.
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Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal
Edição: Elis Almeida