A Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) aprovou em segundo turno o Projeto de Lei (PL) 195/2023, de autoria do deputado Leleco Pimentel (PT), que institui a Política Estadual de Produção Social de Moradia e Autogestão. A medida, que agora aguarda sanção do governador Romeu Zema (Novo), levanta o debate sobre o contexto de grave déficit habitacional no estado. A aprovação aconteceu na terça-feira (26).
Atualmente, em Minas Gerais, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que cerca de 1,2 milhão de imóveis estão desocupados, enquanto o déficit habitacional quantificado é de cerca de 556 mil imóveis.
Na prática, isso quer dizer, que o estado tem duas vezes mais imóveis desocupados do que a quantidade de residências necessárias para suprir a demanda de famílias que vivem em condições de moradia inadequadas ou muito onerosas.
O problema é generalizado no Brasil, principalmente entre as capitais, regiões metropolitanas e demais grandes cidades. Especialistas apontam que a raiz dessa questão está na especulação imobiliária.
Além disso, embora a política de habitação seja, desde a criação do Estatuto da Cidade em 2001, de atribuição dos municípios, alguns estados alocam recursos e constroem projetos de auxílio às cidades, o que não acontece em Minas Gerais.
“Aqui, isso é um grande problema, já que esse tipo de política não existe. Em geral, Minas Gerais tem uma atuação muito frágil e faltam projetos para sanar o déficit habitacional nas grandes cidades mineiras”, explica Vinicius Moreno, do Movimento Brasil Popular.
Minas Gerais e o grave problema do déficit habitacional
A Fundação João Pinheiro (FJP), que monitora o tema no Brasil, registrou alta de 30% no déficit habitacional de Minas entre 2016 e 2022. Para a deputada estadual Bella Gonçalves (PSOL), boa parte do problema está ligada à má condução do governo estadual.
“Minas Gerais, com o governo Zema, têm precarizado as condições de reverter esse processo. Hoje, o Estado desmontou a sua companhia de habitação, fez o leilão de terrenos que deveriam ser utilizados para construção habitacional e praticamente não avançou em regularização fundiária. Isso pode estar por trás do crescimento tão abrupto do déficit habitacional”, pontua a deputada estadual.
Um relatório FJP, que compara dados de 2016 a 2019, aponta que Minas Gerais corresponde a 8,96% do déficit habitacional registrado em todo o Brasil.
Cabe ressaltar que a maioria das famílias atingidas pela falta de moradia adequada é chefiada por mulheres (62,6%), por pessoas que se autodeclaram pardas (52,6%), e famílias classificadas com renda domiciliar 1 do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), ou seja, com renda mensal bruta de até R$2850,00 (74,5%).
Edneia de Souza, dirigente do Movimento Nacional de Luta Pela Moradia (MNLM) aponta que, historicamente, o estado não tem conseguido lidar com a habitação. Para ela, Minas Gerais sempre tratou com absoluto “desprezo” o problema da falta de moradia.
“A lógica que impera é a de que, se o local ocupado pela população for de interesse do mercado, essa população será removida de lá pelas forças de segurança, que deveriam estar preocupadas com a seguridade do povo trabalhador”, denuncia.
“O Estado trata com desdém a necessidade de moradia do povo e isso reflete, por exemplo, no fato de que, em todos os anos, em época de chuvas, morrem pessoas, em decorrência do crescimento desordenado das cidades”, continua Edneia.
O problema é a especulação
A questão da falta de moradia tem raízes históricas e remontam à Lei de Terras de 1850, que, após a abolição da escravidão, impediu o acesso de mais da metade da população, negra e anteriormente escravizada, à terra.
Atualmente, como enfatiza Edneia, o problema está relacionado à especulação imobiliária.
“Foi a partir do Estatuto da Terra, que criou o conceito da terra e de propriedade inviolável, que a população trabalhadora — esmagadoramente preta e escravizada — teve o acesso à terra negado. Na atualidade, o estado e os municípios estão colocando suas áreas mais nobres, que deveriam estar a serviço do povo, na mão do mercado imobiliário, que enriquece cada vez mais”, analisa a coordenadora do MNLM.
Para a deputada estadual Bella Gonçalves, a especulação é a face mais perversa da dinâmica da terra e da injustiça urbana. Ela entende que a ausência de moradias para a população e as moradias vazias são parte de um mesmo projeto.
“Os imóveis se tornam mais valiosos, na medida em que tem mais gente precisando deles. Por isso, um prédio vazio tende a se valorizar muito quanto mais existem pessoas sem casa. Esse é um aspecto extremamente contraditório”, explica.
Constituição prevê mecanismos
O urbanista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Roberto Andrés explica que o déficit habitacional está diretamente ligado ao não cumprimento da Constituição Federal, que inclui instrumentos que permitem e incentivam que os governos, principalmente municipais, implementem políticas de ocupação de imóveis abandonados.
“É possível citar como exemplos o IPTU progressivo no tempo, para imóveis sem uso — ou seja, aumentando ano a ano em que as habitações permanecem abandonadas —, ou a desapropriação de imóveis que não cumpram a função social da propriedade”, cita o professor.
Ele destaca ainda que o Estatuto da Cidade, artigo constitucional que completou 23 anos em 2024, ainda é pouquíssimo aplicado na maioria dos municípios, sendo necessário que as cidades coloquem em seus planos diretores instrumentos para tornar real a função social da propriedade.
“Até hoje, muitas cidades não aplicam os instrumentos mais básicos do estatuto, que buscam justamente remediar a questão: por que tem mais casas vazias do que gente sem casa? Os proprietários especulam com os seus imóveis, esperam que uma região se desvalorize para construir nela. Depois, por diversas razões, ficam endividados e deixam de pagar os impostos. É necessário fazer com que um prédio vazio não fique lá parado, mas se torne uma habitação social”, defende.
Grandes cidades enfrentam um problema maior
Na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), a questão também é séria, coincidindo com o cenário geral do estado. Em 2022, a capital mineira atingiu um déficit de quase 109 mil domicílios. A RMBH, composta por 34 cidades, concentra o maior déficit do estado, além de diversas áreas de risco, devido ao crescimento acelerado das cidades.
“Belo Horizonte é escandalosamente excludente desde o seu nascimento. O município já surgiu excluindo os trabalhadores que vieram construí-lo, o que fez surgir muitos aglomerados e favelas com problemas graves de infraestrutura. Isso se dá pela incompetência do Estado e da prefeitura em desenvolver políticas habitacionais eficientes”, denuncia Edneia, dirigente do MNLM.
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Com uma grande concentração de habitantes, o problema se agrava em todas as regiões metropolitanas no país. Outra questão, segundo Vinicius Moreno, do movimento Brasil Popular, é que, na capital mineira, boa parte das famílias gasta mais de 30% da renda com moradia.
“Aqui, temos uma alta concentração de imóveis parados, já que a capital tem mais recursos e, por isso, é onde a especulação imobiliária é mais ágil. As contradições na RMBH são mais fortes”, comenta.
De acordo com uma pesquisa realizada pela UFMG, o Centro de Belo Horizonte tem imóveis que poderiam ser transformados em ao menos 25 mil unidades habitacionais. São prédios abandonados, lotes vagos e áreas utilizadas provisoriamente como estacionamento.
“A situação é drástica. Quando fui vereadora, eu fiz um relatório pela comissão de Direitos Humanos, que mostrou que Belo Horizonte, nos últimos anos, não construiu uma unidade habitacional sequer. Também pouco contribuiu para a regularização de ocupações urbanas e de territórios que surgiram como resposta à ausência de políticas ”, denuncia Bella Gonçalves.
A deputada estadual destaca ainda que o município já foi referência na produção de moradias sociais, mas que esse cenário mudou.
“Belo Horizonte recentemente precarizou muito a sua atuação na área de habitação. Éramos referência, nas épocas de Patrus Ananias (PT) e Célio de Castro, em que a gente tinha o orçamento participativo da habitação, a construção da Urbel e outras medidas. Mas esse progressismo na política habitacional da cidade foi se perdendo e isso faz com que o déficit aqui também tenha se agravado muito”, relembra a parlamentar.
As soluções populares
Frente a essa situação de tamanha precariedade, a população mineira se mobiliza historicamente na luta por moradia. Edneia relembra que já na época da Lei de Terras surgiram mobilizações populares.
O primeiro modelo foram as associações de moradores, que compravam coletivamente terrenos para a construção de diversas residências, buscando atender às necessidades da população.
“Essa era a única forma de o povo ter acesso à moradia. Era coletivamente ou ocupando as áreas que não despertavam interesse do poder público e das construtoras. Já na década de 70, surgiu a Confederação Nacional das Associações de Moradores, que levantava também a bandeira do combate à carestia e à falta de serviços básicos. Em Minas, surgiu a Federação das Associações de Moradores do Estado de Minas Gerais (Famemg)”, conta.
Em Belo Horizonte, Edneia cita ainda entidades históricas como: a União dos Trabalhadores de Periferia (UTP), a Federação das Favelas de Belo Horizonte, a Associação dos Moradores de Aluguel de Belo Horizonte (Amabel) e a Federação das Associações de Moradores do Município de Belo Horizonte.
“Embora essas entidades não existam mais, a construção de lutas que temos hoje é reflexo de sua atuação histórica”, aponta.
Com a falta de resolução para a lacuna da moradia, diversos movimentos seguem atuando na luta por habitação popular digna, como o MNLM, do qual Edneia faz parte, as Brigadas Populares, o Movimento de Luta dos Bairros e Favelas (MLB), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), o Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos (MTD), o Movimento Brasil Popular, entre outros.
Para Roberto Andrés, além da importância da luta dos movimentos populares na conquista de direitos, é necessária a atuação do Estado.
“É insuficiente, se o Poder Público não fizer a parte dele. A alternativa é cumprir a lei e fazer com que o que está na Constituição Federal se torne prática. É o mínimo”, ressalta o professor.
Na ausência da atuação do Estado, Edneia explica que uma das principais ferramentas de luta dos movimentos por moradia é a ocupação urbana.
“O trabalhador que pega serviço às 7h e larga às 17h não desaparece enquanto não está no trabalho. Ele tem que voltar para algum lugar. O Estado tem que promover moradia digna. Quando o Estado não promove, os próprios trabalhadores promovem, por meio das ocupações”, argumenta.
Entenda o conceito
Segundo a FJP, o conceito de déficit habitacional tem dado suporte a indicadores que buscam entender a falta de habitações ou sua existência em condições inadequadas, abarcando uma noção mais ampla das necessidades habitacionais
“O atual papel dos indicadores do déficit habitacional e da inadequação domiciliar é dimensionar a quantidade de moradias incapazes de atender o direito de acesso, por parte da população, a um conjunto de serviços habitacionais que sejam, pelo menos, básicos” , apresenta uma cartilha publicada pela fundação.
Nesse sentido, o cálculo considera como habitações precárias as que incluem domicílios rústicos e precários. Já a coabitação de famílias acontece quando a família ocupa apenas um cômodo, ou múltiplos núcleos familiares habitam na mesma residência.
Para a FJP, um aluguel é excessivamente oneroso quando corresponde a mais de 30% da renda de uma família que sobrevive com até 3 salários mínimos. A fundação também chama a atenção para inadequações de serviços urbanos (água, saneamento, coleta de lixo, etc.) e edilícias (cobertura de piso, banheiro exclusivo da residência, armazenamento de água e cômodos dormitórios).
Sobre o projeto de lei
O PL 195/2023, citado no início da matéria, visa contribuir na solução do problema e propõe a “produção social de moradias por autogestão ou processo solidário de construção, reforma, melhoria, urbanização, requalificação habitacional ou regularização fundiária urbana de interesse social realizado por associados, com o auxílio de assessoria técnica”.
Entre os objetivos da legislação constam o protagonismo da população na solução de seus problemas habitacionais e a possibilidade de reformas e reabilitações de imóveis.
Além disso, a política estadual tem como princípios a dignidade da pessoa humana; o direito social à moradia digna; a participação social e o exercício da cidadania; a inclusão socioeconômica; a função social da propriedade e da cidade; e a sustentabilidade ambiental.
Para acessar o Relatório Déficit Habitacional no Brasil 2016-2019 da Fundação João Pinheiro, basta clicar neste link. Para ter acesso aos infográficos desenvolvidos pela FJP, clique aqui.
Edição: Ana Carolina Vasconcelos