“Quem não gosta de samba, bom sujeito não é”, já dizia Dorival Caymmi. O samba, de origem negra e pobre, segue sendo um espaço de resistência da cultura e da sabedoria negra. Em Belo Horizonte, o ritmo vive um momento de crescimento e popularização, com o surgimento de espaços, grupos e músicos.
Mas nem sempre foi assim, como conta Carlos Alberto dos Santos, fundador do Bar do Cacá, uma das mais antigas casas de samba da cidade, com 35 anos de funcionamento.
“Quando a gente começou, não tinha esse espaço, nem nenhum outro. A gente não sabia tocar, nem cantar direito, só gostava de samba e queria se divertir. Agora que eu estou fazendo aula de canto. Naquela época, o samba era grande no Rio, em São Paulo, aqui não”, relembra.
Ele relembra que se apaixonou pelo samba ao ver Beth Carvalho, mas não encontrava locais voltados ao ritmo no município. Foi quando, no fim da década de 80, abriu, junto do irmão e do cunhado, a casa que ainda resiste.
De lá pra cá, conforme ele conta, o samba só se popularizou. O espaço vive cheio e recebe artistas locais, que surgiram desse crescimento. O samba se estruturou, sempre posicionado enquanto um movimento negro.
Um dos destaques do Bar do Cacá é a parede verde e rosa, cores da Escola de Samba Mangueira, com caricaturas de grandes nomes do samba, lembrando sempre de quem veio primeiro.
Afro religiosidade
Além do respeito à ancestralidade do samba e aos sambistas, um outro ponto chave no cenário do samba mineiro é a religiosidade de matriz africana, raiz do samba.
Se no Cacá o samba de roda é o ritmo que predomina, no Samba da Meia Noite, o protagonismo é do chamado samba de terreiro.
Com pontos — cantos voltados para Orixás e entidades —, atabaques e ritmo batido na palma da mão, o Samba da Meia Noite acontece em espaços abertos, como o Viaduto Santa Teresa, fazendo uma ode à malandragem.
Jeferson Gomes, integrante do grupo, destaca a afro religiosidade como um dos diferenciais da roda, que existe desde 2012 e já enfrentou resistência justamente por cantar e tocar para Orixás e entidades.
“A gente faz esse samba somente no corpo, na voz e no tambor, de uma forma genuína. Nós temos sambadeiras, que são as mulheres que mantêm a roda viva; e os tocadores e as tocadoras que mantém o batuque vivo. A gente dialoga se tornando um corpo só. A proposta é levar as nossas matrizes, a nossa força, a força do samba como ele é”, comenta.
Hoje, é praticamente impossível chegar em uma roda de samba em BH que não toque ao menos um ponto de religiões de matriz africana. Essa é uma das mudanças apontadas por Jeferson.
Protagonismo negro
Afrocentrar é palavra de ordem no movimento do samba em Belo Horizonte. Pessoas brancas não são proibidas, mas um consenso existente é de que o samba é um solo negro, onde o povo negro é protagonista.
Com essa proposta, surgiu o Afrogalpão, um dos mais recentes espaços de samba da capital, voltado à exaltação da negritude, onde ocorrem eventos como a Resenha dos Pretos e o Samba de Agô.
A abertura de novas casas é fundamental para a manutenção e o crescimento do samba na capital. Daniel Felipe, conhecido como Daniel Raiz, fundador da casa, entende o ritmo como algo vivo, espiritual e transcendental.
“Eu entendo o samba como um ser espiritual, uma entidade. Eu sinto energia, sinto axé, sinto inspirações e vejo que as pessoas conseguem sentir a mesma coisa. É algo muito vivo que pulsa nos nossos corações. E também tem algo ancestral, que vem dos nossos antepassados”, explica.
Pensando em toda essa força, ele cita nomes como Mandruvá, Fabinho do Terreiro, Fernando Bento e Geraldo Magnata como pessoas que ajudaram a construir o samba na capital e fala das mudanças que vê na nova geração.
“O que eu vejo de diferente entre os mais antigos e a nova geração é a questão da adaptação. Músicos mais antigos têm uma pegada um pouco mais ‘reta’ que músicos mais novos. Os músicos mais novos querem se adaptar, pegar músicas de outros ritmos, trazendo para o samba”, comenta.
O samba é matriarcal, mas ainda é desafiador para mulheres
Para os sambistas, o samba é sagrado. E como canta Dona Ivone Lara, “é chão para se pisar devagarinho”. Adriana Araújo, cantora e um dos maiores expoentes do samba da capital, faz questão de destacar que o samba está em seu DNA, enquanto herança ancestral que ela aprendeu a amar com sua mãe.
“O samba sempre fez parte da minha história musical. Minha mãe sempre escutou grandes nomes do samba e aprendi com ela a amar amá-lo”, enfatiza.
Ainda que, seguindo as tradições africanas, o samba deva ser um espaço matriarcal, mulheres encontram dificuldades de entrar e se manter na cena, como afirma Adriana.
“Ser mulher no samba é desafiador, é pedreira. É preciso ser persistente, ter paciência no sofrimento e por aí vai. Não é fácil, principalmente sendo preta retinta, com traços negroides, como os que tenho. São muitos anos para obter o respeito dos sambistas nas rodas de BH e, mesmo assim, ainda tenho muito o que fazer. A cena está se abrindo sim, graças a Deus, mas há muito o que melhorar”, explica.
Mesmo com as dificuldades, nomes como Dona Jandira e Dona Elisa, matriarcas do samba mineiro, seguem inspirando não só Adriana, como diversas outras sambistas, mostrando que o samba é raiz, resistência, ancestralidade e futuro.
Edição: Ana Carolina Vasconcelos